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Cancro: Quão importante é a palavra esperança? Susana Almeida
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Oficialmente é médica psiquiatra.
Na prática, é uma ouvidora profissional ajudando pessoas a quem foi diagnosticado cancro. Ouve doentes, famílias e profissionais que tratam esta doença no IPO do Porto.
Susana Almeida dirige o serviço de psiquiatria deste hospital.
Mas de facto é uma especialista em transformar dor em narrativa, sofrimento em resiliência e perda em oportunidade de crescimento.
No seu dia-a-dia aprendeu que a “A nossa cara diz muito sobre nós”, explicando que o trabalho de um psiquiatra começa antes mesmo de o doente nem sequer abrir a boca.
É no detalhe que Susana encontra o primeiro capítulo de cada história. O olhar desviado, a hesitação ao caminhar, a escolha das palavras — tudo é revelador.
Voltamos à observação da linguagem não verbal. Onde o gesto fala. E diz coisas que aa pessoas não conseguem colocar em palavras.
É como se a palavra angústia estivesse em cada trejeito, tremura ou olhar vago.
Claro, há o gesto e a palavra. Mas comunicar é também não comunicar.
Explico-me: o não dito é uma forma de dizer.
O desafio de Susana Almeida não é apenas escutar o que é dito, mas decifrar o que fica por dizer. A sua experiência diz-lhe que o confronto com uma doença grave é, muitas vezes, um momento de balanço.
O momento da nostalgia do que poderíamos ter sido. O confronto com as escolhas da vida. Porque escolhi ser isto e não aquilo. Porque decidi estar com esta pessoa e não outra. Ou nenhuma.
Perguntas sem resposta apaziguadora. E sem tempo para reviver.
Depois há o confronto com o corpo. Com a possível ou real mutilação.
Com o impacto no lar.
Ouvi a história de uma mulher que recusava a ideia de ter de tirar uma mama porque os seios eram parte fundamental e inegociável da sua identidade pessoal.
Mas este episódio não é só dor.
É uma conversa carregada de energia e esperança.
De pacificação, crescimento e possibilidade.
Bem-vindos à discussão milenar da condição humana.
Vale ouvir. Vale partilhar.
A luta contra as grandes adversidades recolhe forças nos dias bons.
Nos dias que passaram, nos dias que hão de vir.
A alegria de um momento robusto de afetos funciona sempre como uma bateria. E as esperança do melhor como dínamo de energia.
Vale sempre ouvir. Vale falar. Vale ser humano. Na mais universal das definições.
RESUMO
No Instituto Português Oncologia do Porto, num gabinete repleto de histórias não contadas, a psiquiatra Susana Almeida enfrenta diariamente as fragilidades da condição humana. Diretora do serviço de Psiquiatria, Susana Almeida é especialista em transformar dor em narrativa, sofrimento em resiliência e perda em oportunidade de crescimento. “A nossa cara diz muito sobre nós”, começa por explicar, sublinhando que o trabalho de um psiquiatra começa antes mesmo de o doente abrir a boca.
É no detalhe que Susana encontra o primeiro capítulo de cada história. O olhar desviado, a hesitação ao caminhar, a escolha das palavras — tudo é revelador. “A observação do não verbal é essencial. Como alguém chega à consulta pode dizer mais do que qualquer exame.” No IPO, onde os doentes frequentemente enfrentam diagnósticos de cancro, estes sinais tornam-se ainda mais importantes. “Muitas vezes, as pessoas não conseguem verbalizar a angústia, mas ela está lá, evidente nos gestos e na postura.”
O desafio de Susana não é apenas escutar o que é dito, mas decifrar o que fica por dizer. A sua experiência diz-lhe que o confronto com uma doença grave é, muitas vezes, um momento de balanço. “Há quem se foque no presente, mas muitos são assombrados pela nostalgia do que poderia ter sido. Escolhas que não fizeram, caminhos que não tomaram, relações que não cultivaram. É como se o tempo parasse num passado idealizado, mas a verdade é que o que não foi vivido não é garantia de nada melhor.”
Entre os relatos que marcaram o seu percurso, Susana recorda uma paciente que recusava a ideia de uma mastectomia. “Ela dizia: ‘As minhas mamas são parte crítica da minha identidade.’ Cada pessoa atribui valor ao corpo de forma única, e o papel do médico é ajudá-la a reconstruir essa relação consigo mesma.” Este apoio vai além da saúde física — trata-se de restaurar um sentido de identidade e dignidade.
Mas e quando a saúde mental de um doente colide com a dinâmica do lar? Susana explica que as relações, tal como os corpos, sofrem transformações sob o peso da doença. “Se o casal já tem uma boa comunicação, é mais fácil enfrentar os desafios juntos. Mas, se há lacunas ou tensões, estas tornam-se evidentes.” Em muitos casos, Susana convida os parceiros para as consultas, criando um espaço seguro para as dificuldades poderem ser discutidas. “A ideia é encontrar novas formas de conexão e intimidade. Muitas vezes, é um momento de reconstrução para ambos.”
Há um fio condutor que atravessa o trabalho da psiquiatra: a esperança. “A esperança é uma força motriz épica. Nunca devemos castrá-la”, afirma com a convicção de quem já viu o pior e o melhor da natureza humana. Mesmo em cenários de prognósticos difíceis, a escolha das palavras faz toda a diferença. “Não se trata de pintar um cenário irreal, mas de mostrar que, mesmo num contexto difícil, há caminhos a explorar. As palavras têm peso, e o tom certo pode ser decisivo.”
No entanto, este equilíbrio entre realismo e esperança exige muito dos profissionais de saúde. “Os médicos mais motivados são, muitas vezes, os mais vulneráveis ao ‘burnout’. Têm uma enorme disponibilidade emocional e acabam por negligenciar o auto cuidado.” No IPO, há mecanismos de suporte para a equipa de psiquiatria, incluindo supervisões regulares. “Precisamos de espaços para refletir, validar o que fazemos e apoiar-nos mutuamente.”
Quando lhe pergunto como encontra forças para lidar com tanto sofrimento, Susana sorri. “O que me move são as pequenas vitórias. Ver que um doente conseguiu voltar a jantar com a família ou que encontrou paz num momento de caos é o que me valida.”
TÓPICOS & CAPÍTULOS
[00:00] Introdução ao Tema da Comunicação em Momentos de Dor
O episódio aborda a importância da comunicação em momentos de dor extrema e vulnerabilidade, especialmente em situações de diagnóstico de doenças graves, como o câncer.
[00:12] Apresentação de Susana Almeida
Susana Almeida, médica psiquiatra e ouvidora profissional, fala sobre a sua experiência em ajudar doentes diagnosticados com cancro e as suas famílias.
[00:46] A Linguagem Não Verbal na Psiquiatria
A importância da observação da linguagem não verbal e como os psiquiatras interpretam sinais antes mesmo do doente falar.
[01:46] O Confronto com a Doença e a Identidade
Discussão sobre como a doença pode levar a reflexões sobre escolhas de vida e a identidade pessoal, incluindo a resistência e superação.
[03:01] A Comunicação em Casais Durante a Doença
Como a comunicação entre casais pode ser afetada por diagnósticos de doenças graves e a importância de abrir diálogos sobre intimidade.
[04:50] A Importância da Observação no Atendimento Psiquiátrico
A prática de observar o comportamento e a aparência dos doentes como uma ferramenta diagnóstica.
[06:34] A Coerência entre Verbal e Não Verbal
A busca por coerência entre o que é dito e o que é comunicado através da linguagem não verbal.
[09:04] O Papel do Psiquiatra no Acompanhamento de doentes com Câncer
Como os psiquiatras auxiliam os doentes a lidar com o medo e a imprevisibilidade da doença.
[10:24] Nostalgia e Reflexão sobre Escolhas de Vida
A ideia de nostalgia em relação ao que poderia ter sido, especialmente em momentos de crise.
[12:44] A Comunicação sobre Mutilações e Identidade
Discussão sobre como as mutilações afetam a identidade e a sexualidade, e como isso é abordado em casa.
[14:12] Abertura de Diálogo em Casais
A importância de ter um histórico de boa comunicação para lidar com questões difíceis.
[16:09] Consultas com Parceiros
A prática de incluir parceiros nas consultas para facilitar a comunicação e o apoio mútuo.
[19:57] A Superação de Mutilações e a Relação
Como casais podem encontrar novas formas de intimidade após uma mutilação.
[22:31] O Impacto da Doença nas Relações
Reflexão sobre como a doença pode revelar fragilidades nas relações e levar a separações.
[25:57] Crescimento Pessoal Após a Doença
A ideia de crescimento pós-traumático e como as pessoas se reavaliam após experiências difíceis.
[27:51] A Conversa sobre a Morte
A dificuldade de abordar a morte e como isso varia entre culturas.
[30:06] A Importância da Comunicação Clara
A necessidade de uma comunicação clara e sensível sobre a morte e o tratamento.
[32:35] O Cuidado Pessoal dos Profissionais de Saúde
A importância do auto cuidado para os profissionais de saúde e como eles lidam com a carga emocional do trabalho.
[35:25] O Luto dos Profissionais de Saúde
A necessidade de processar a perda de doentes e o suporte entre colegas.
[39:39] A Responsabilidade dos Profissionais de Saúde
A importância de cuidar de si para poder cuidar dos outros.
[43:06] A Esperança como Força Motriz
A esperança como um elemento essencial na vida dos doentes e como isso é percebido pelos profissionais.
[47:56] A Comunicação de Más Notícias
A formação e a importância de comunicar más notícias de forma sensível e clara.
[51:33] Conclusão sobre a Prática Psiquiátrica
Reflexão sobre a satisfação que vem de auxiliar os doentes e a importância de ouvir e entender as suas experiências.
Transcrito Automaticamente Com Podsqueeze
JORGE CORREIA 00:00:12 Ora vivam! Bem vindos ao Pergunta Simples o vosso Podcasts sobre Comunicação. Não encontro momento mais importante para comunicar do que aquele instante em que sentimos uma dor extrema ou uma vulnerabilidade infinita. Porque é necessário, porque é relevante e porque ajuda muito. Podemos fazer uma lista infinda de situações em que a dor, a fala e a escuta se encontram. Mas poucas situações se comparam às da perda de vida humana ou de grave ameaça sobre a sobrevivência. Este programa é sobre a forma como reagimos, como pedimos ajuda e confessamos os nossos mais íntimos sentimentos. Em particular quando alguém nos informa de um diagnóstico terrível, uma edição sobre coisas difíceis, mas também sobre esperança contagiante e resistência humana às maiores adversidades do mundo. Oficialmente é médica, psiquiatra na prática e uma ouvidora profissional ajudando pessoas a quem foi diagnosticado cancro. Houve doentes, houve famílias e até houve profissionais que tratam esta doença o cancro no IPO do Porto. Susana Almeida dirige aí o serviço de Psiquiatria, mas de facto é uma especialista em transformar dor em narrativa, sofrimento em resiliência e perda em oportunidade de crescimento no seu dia a dia.
JORGE CORREIA 00:01:46 Aprendeu que a nossa cara diz muito sobre nós. Explicando que o trabalho de um psiquiatra começa mesmo antes do doente sequer abrir a boca. É no detalhe que encontra o primeiro capítulo de cada história. O olhar desviado, A hesitação ao caminhar, a escolha das palavras. Tudo é revelador. Voltamos à observação da linguagem não verbal, onde o gesto fala e diz coisas que as pessoas não conseguem colocar em palavras. É como se a palavra angústia estivesse em cada trejeito, em cada tremura ou em cada olhar vago, claro, ao gesto e à palavra. Mas comunicar é também não comunicar. Eu explico me. O não dito é uma forma de dizer. O desafio de Suzana Almeida não é apenas escutar o que é dito, mas decifrar o que ficou por dizer. A sua experiência diz lhe que o confronto com uma doença grave é muitas vezes um momento de balanço, um momento da nostalgia do que poderíamos ter sido entre as escolhas da vida. Porque escolhi ser isto e não aquilo, Porque decidi estar com esta pessoa e não com aquela? Perguntas sem resposta, apaziguadora à primeira vista e sem tempo para as poder reviver, Afinal, são coisas que ficaram lá atrás no passado.
JORGE CORREIA 00:03:01 Depois, ao confronto com o corpo, com a possível ou real mutilação com impacto no lar, Lá em casa eu vi, por exemplo, a história de uma mulher que recusava a ideia de ter de tirar uma mama por causa do seu tratamento, porque os seus seios eram parte fundamental e inegociável da sua identidade pessoal. Mas este episódio não é só sobre dor, é também sobre superação numa conversa carregada de energia e de esperança, de pacificação, de crescimento e de possibilidade. Bem vindos à milenar discussão sobre a condição humana. Susana Almeida, médica psiquiatra, dirige neste momento o Serviço de Psiquiatria do IPO do Porto. Estávamos aqui a falar naqueles testes que se fazem sempre antes de começar uma gravação sobre a questão da nossa imagem, como é que é e como o penteado está melhor, não está? Eu estou bem, Fique bem. A luz está boa, não está? A nossa, nossa relação com a nossa cor, nossa imagem pessoal está sempre em causa. Estamos sempre a olhar para o espelho.
SUSANA ALMEIDA 00:04:09 Eu acho que às vezes não estamos a olhar para o espelho, mas pensamos que estamos a para o espelho.
SUSANA ALMEIDA 00:04:13 Não é uma espécie de sentido de oportunidade de darmos o nosso melhor. E isso não é mau. É uma característica que mostra Abril e gosto. Gosto em darmos o máximo, mas de facto, às vezes não é uma prioridade.
JORGE CORREIA 00:04:26 É uma espécie de brio para a maneira como nós estamos a olhar para a maneira como gostamos que os outros olhem para nós e dizer assim olha, está muito bem e gostamos, Eu gosto de a ver. Aliás, a nossa cara diz muita coisa sobre nós. A maneira como eu imagino que alguém entre aí no consultório, um médico, um psiquiatra, ainda por cima uma psiquiatra, olha e tira logo a pinta ao que aí vem.
SUSANA ALMEIDA 00:04:50 Não devemos tirar logo a pinta. Aliás, é muito mau irmos, como se diz em Portugal, em português corrente, irmos de carrinha. Não é a fazer um pressuposto até preconceituoso porque associamos algumas características de gosto ou de estilo a classes sociais ou etnias ou subgrupos e às vezes até é bastante enganador. Mas há, de facto uma coisa que os psiquiatras sempre se habituaram a fazer, que é a minúcia da observação.
SUSANA ALMEIDA 00:05:20 Por exemplo, eu faço muito gosto e é assim que ensino os os internos que estão comigo e os outros que estão comigo a ir buscar os meus doentes à sala de espera para poder ver muito antes como eles chegam e com quem estão, como estão, se estão a conversar, se estão a olhar para o chão, se estão isolados, estão sozinhos, socializam e, portanto, como se levantam? Como caminham? Qual é a sua indumentária? A velocidade, a forma como caminham, tudo isso é uma informação preciosíssima para um psiquiatra, porque acrescenta muito àquilo que eu já estive a consultar no processo antes chamado doente. E nesse sentido, se quiser. Para o psiquiatra, a observação do não verbal mais do que até o aspecto só da compleição da face ou do cansaço, acrescenta imenso valor, imenso valor e, portanto, sim, sobretudo neste contexto, muitas vezes um aspeto muito determinante. Infelizmente, às vezes eu vejo pessoas com pior aspecto que o que eu esperaria, mas muitas vezes, surpreendentemente, eu vejo pessoas como muito melhor aspeto que eu esperaria.
SUSANA ALMEIDA 00:06:20 Portanto, isso também é gratificante.
JORGE CORREIA 00:06:22 Então, Susana, E pode ensinar nos a nós, leigos, não psiquiatras e que não trabalhamos como doentes. O que é que lê? Como é que se leem as pessoas? O que é que vai à procura?
SUSANA ALMEIDA 00:06:34 Eu vou à procura daquilo que nós normalmente vamos à procura numa interação social, mas um bocadinho mais além, se quiser. Aquilo que eu tive, tentei dizer no início. É uma das características mais importantes da comunicação não verbal e até uma ferramenta do psiquiatra chama se a aparência e o comportamento. É uma forma que nos ajuda a perceber se a forma começou a se apresenta e se fala. É coerente com a forma como a pessoa normalmente é e com a mensagem que nos quer transmitir. Portanto, o que é que nós estamos à espera? De uma certa coerência entre o verbal e não verbal ou de uma incoerência? Vamos à espera de ver se a pessoa está a comunicar connosco ou com mais alguma entidade que pode ser produzida pelo seu cérebro, como por exemplo, na doença psicótica, na esquizofrenia.
SUSANA ALMEIDA 00:07:22 De facto, responde a estímulos que não tem perceção, portanto algo que acontece dentro do seu cérebro, mas que eles interpretam como vindo do exterior. É uma coisa fascinante e assustadora, porque, de facto, nós percebemos que o mundo está perturbado com qualquer coisa que ele vê e sente ou só ouve. E nós percebemos que está ali uma espécie de interrupção na comunicação. Mas o doente habitual aqui, por exemplo, no sítio onde eu trabalho, há um doente que não é habitualmente o doente dito psicótico. É um doente que pode estar e. Digerir, por exemplo, o diagnóstico, processar o que lhe está a acontecer, às vezes de uma forma mais ansiosa, às vezes de uma forma mais depressiva e às vezes até com alguma normalidade. Tudo o que eu tento procurar é se aquilo que me está a dizer, então, coerente com tudo aquilo que eu estou a tentar perceber, se esquiva os olhos, se olha bem, se fica manchado, se chora, se chorei um choro triste, se é um choro gritado de revolta também acontece.
SUSANA ALMEIDA 00:08:27 Se é um doente que não prefere falar comigo porque está zangado e até está indignado com vir à psiquiatria. Existe imenso estigma ainda hoje e, portanto, muitas vezes o que eu pretendo é só uma forma de tentar chegar até ele. E às vezes todas essas pistas são importantíssimas. Até posso às vezes começar uma consulta por refletir isso mesmo.
JORGE CORREIA 00:08:48 Como é que se ajuda doentes, neste caso doentes de cancro, que acabaram de saber ou que já estão em tratamento no instituto? A lidar com essa noção de imprevisibilidade e de medo do futuro.
SUSANA ALMEIDA 00:09:04 É engraçado. Eles nós ajudamos, mas às vezes eles até nos ensinam a nós como é que se pode fazer isso de forma competente. Eu acho que estou numa posição de grande privilégio, porque eu todos os dias aprendo muito e aprendo com as pessoas que tenho a sorte de poder consultar. Ora bem, pensemos na pessoa e nós chegamos a alguém novo, um médico, neste caso uma psiquiatra com toda uma bagagem de quem eu fui até hoje. A minha identidade, a minha cultura, o meu meio, os meus recursos internos e externos.
SUSANA ALMEIDA 00:09:41 E é essa pessoa que adoece. Portanto, eu adoeço dentro de uma personalidade, de um contexto e uma forma de estar. E nós temos de conhecer exactamente essa pessoa para perceber a forma como ela vês. Por exemplo, uma coisa que é muitíssimo relevante essa pessoa já teve antecedentes de um adoecer patológico perante o sofrimento. Há pessoas que o sofrimento não é uma doença de todo. Aliás, muitos de nós vamos ter se tudo correu bem, muitas perdas ao longo da vida. Desde logo, quando fazemos escolhas, as escolhas importantes da nossa vida importam sempre um caminho e outro que ficou para trás. Portanto, se nós vamos para a medicina ou se vamos para o jornalismo, deixamos de poder ser arquitetos ou pilotos de aviação, pelo menos em tempo real. E ao mesmo tempo, podemos ter um dia.
JORGE CORREIA 00:10:24 Isso dói nos. Essa, essa escolha que em princípio é positiva. Nós, perante os dados que nós temos da nossa vida naquele momento, fizemos uma escolha positiva. Como é que essa ideia do que não escolhemos nos dói? Então, passamos a nossa vida sempre a choramingar Não.
SUSANA ALMEIDA 00:10:42 Não, não, não, não nos dói sempre. Vai nos sempre ser a escolha que nós tomamos não nos agradar ou não se cumprir. Não, não, não nos permitir concretizar aquilo que esperamos que ela pudesse ser. E nesse sentido, muitas vezes temos uma coisa que é peculiar, que é uma nostalgia do que poderia ter sido. E essa nostalgia do que poderia ter sido acontece muitas vezes, quando depois a vida corre mal.
JORGE CORREIA 00:11:04 Como é que é isso? Eu quero saber sobre isto. Nostalgia daquilo que poderia ter acontecido. Portanto, eu fui por aqui e agora estou aqui, como se diz também no meu norte. Estou aqui a torcer a minha orelha, porque que diabo, fiz a escolha errada.
SUSANA ALMEIDA 00:11:18 E olhe se imenso cá nesta vivência da doença. E foi por aí que a gente começou. Imagine que eu adoeci com uma doença, neoplasia e essa doença neoplasia feita, por exemplo. A minha vida relacional começa por afetar a minha profissão e, portanto, eu vou para casa. Sou casada, imagine, e ganho menos dinheiro.
SUSANA ALMEIDA 00:11:39 Sinto me afetada na minha autoestima porque não consigo providenciar para a minha família da mesma forma, é porque sinto me incapacitada e portanto, fragilizada numa posição de semi dependência, se quiser. E na sequência dessas perdas eu noto que o apoio que eu gostaria de ter do meu marido não é exactamente aquilo que eu esperaria se um dia ficasse doente, porque as coisas correm bem à partida. Quando a vida corre bem, às vezes a vida começa a correr mal e normalmente, na versão lógica, é uma situação desagradável, mas frequente, de perdas sucessivas, pelo menos transitórias. Lá está, porque a incapacidade para trabalhar muitas vezes resulta nestas circunstâncias que eu estou a dizer. Mas imaginemos como, por exemplo, e eu vi hoje, que é o caso de haver uma senhora que tem um tipo de neoplasia que afecta muito a sua sexualidade e a sua identidade feminina, com alterações no corpo que são marcantes e hormonais, por exemplo. Nessa altura a pessoa pode sentir que esta pessoa está a desiludir. A pessoa que está aqui ao meu lado não me está a apoiar nem me sabe cuidar na medida que eu gostaria.
SUSANA ALMEIDA 00:12:44 Sempre fui um homem frio. Se eu tivesse ficado com aquele meu primeiro namorado que era carinhoso, talvez isto fosse diferente. Está a ver como é engraçada a vida? Como se o tempo ficasse ali congelado e o que era fosse o que eu esperaria que fosse, não é? Não é. O tempo passou e aquele namorado ou aquela pessoa que uma vez conhecemos que era carinhoso e simpático, se calhar hoje é uma pessoa desagradável e muito ressabiada com a vida. Nós não sabemos, mas nós fazemos este exercício em permanência. O ser humano fá lo muitas vezes. E se eu tivesse escolhido ser enfermeira, sei que agora talvez pudesse ajudar melhor. E se eu tivesse, em vez de ter ido ver? Como se nós tivéssemos uma capacidade de manipular o tempo e pudéssemos ir rebuscar oportunidades sem perceber que houve uma modificação radical. O tempo passou, eu também sou diferente.
JORGE CORREIA 00:13:34 Estamos a falar agora dessa mulher que sofre uma questão que afeta a sua sexualidade, a sua, a sua doença. Provavelmente até pode sofrer uma mutilação numa mama onde for.
JORGE CORREIA 00:13:47 Como é que se conversa lá em casa? E eu estou a falar de uma mulher no caso da mama de um homem, no caso da próstata, no órgão sexual. Como é que? Como é que se abrem vias de diálogo lá em casa, quando se calhar muitos destes casais nem sequer habitualmente falavam de coisas mais normais e comezinhas e depois lhes caiu uma desgraça em cima.
SUSANA ALMEIDA 00:14:12 Está a ver como é o ponto? O ponto é esse. Se o casal a comunicar ou tem um histórico de boa comunicação verbal, não verbal, sexual, conjugal, habitualmente nós temos isso a nosso favor, como é evidente. Portanto, é um casal que vai ter menos dificuldades, que vai ter mais capacidade em pedir ajuda e encontrar outras formas até de se encontrar. Peço desculpa pela redundância na forma como encontra o corpo e encontra o outro. Como pensa essa intimidade? Novas formas de excluir o erotismo. Eu vejo aqui coisas fantásticas na forma de um casal muito cúmplice encontrar formas satisfatórias de ter uma sexualidade plena, não aquela que era, mas a que passou a ser.
SUSANA ALMEIDA 00:14:50 Se o casal já traz problemas, se a pessoa que há dois já tem timidez ou dificuldade em ser sentida e percebida pelo seu parceiro e vice versa, o parceiro tem dificuldade em exprimir se porque também muito frequente. Nós ainda temos uma cultura em que as pessoas do género masculino têm alguma dificuldade em dizer ou verbalizar fragilidades desse género, quase como se a virilidade fosse uma condição sine qua non para eu ser a pessoa que sempre fui. E desconstruir isto, sobretudo nas gerações mais velhas, é muito complicado. Portanto, como é que se chega lá a casa com naturalidade? E se eu entendo, por exemplo, na consulta nós temos uma colega que é mesmo especialista em homossexualidade e trabalha com estes casais. Mas se eu perceber em consulta que há algum tabu ou obstáculo que isto está a cavar o isolamento da pessoa e torná la mais doente e naturalmente, uma pessoa doente afetam o sistema e o sistema e a família, e vai muitas vezes além do casal. Eu às vezes convido a pessoa a vir, o companheiro, o parceiro, se quiser, companheiro.
SUSANA ALMEIDA 00:15:55 É uma forma que às vezes é uma palavra até bonita, mas que está destituída de seu sentido quando nós falamos em termos.
JORGE CORREIA 00:16:03 O que acontece nessas consultas? Em que? Em que convida o outro ou a outra a estar presente?
SUSANA ALMEIDA 00:16:09 Eu preparo, às vezes até escrever uma carta, faço questão. Gostaria muito de ter presente. Gostaria muito de o conhecer. Desculpa este abuso, portanto, quando vejo que a pessoa se calhar vai estranhar ser convocada a uma consulta e depois é com naturalidade, sempre à frente da pessoa que está doente para que ela não se sinta excluída ou sentir que há uma espécie de conspiração contra ela. E se nunca nos abordamos com a naturalidade que tem que ser. Podemos muitas vezes com de uma forma que eu penso que facilita, que é legítima. Nesta consulta, em que eu já estou há muitos anos, é habitual que pessoas que passem por aquilo que está a passar, a sua mulher ou o seu marido refiram que complexo o retomar da intimidade, que há uma insegurança com o próprio corpo e que isso transforma muitas vezes uma insegurança na relação.
SUSANA ALMEIDA 00:17:02 Não sei se isto vos tem acontecido, se algo em que tenham refletido. Gostaria muito de ouvir ambos na forma como se adaptaram a esta situação ou se estão a tentar adaptar a isto. Como é que se.
JORGE CORREIA 00:17:11 Ultrapassa depois uma situação de uma mutilação, por exemplo, ainda que possa ser temporária, no caso de, enfim, de uma mama, que uma mulher releva muito como como parte da sua própria identidade, quer. Quero imaginar esta coisa de chegar a casa sem algo que era muito importante para aquela relação, para aquele casal. Sim, estou. Estou a pensar em casais heterossexuais, enfim, comum como uma norma mais genérica, mas isto pode aplicar se a qualquer, a qualquer.
SUSANA ALMEIDA 00:17:38 Jornada, É.
JORGE CORREIA 00:17:39 Verdade. E tipo de.
SUSANA ALMEIDA 00:17:40 Relação é engraçado. Tudo depende da forma como a pessoa valoriza o órgão. E uma vez tive aqui uma situação bizarra em que uma mulher disse que se a proposta for mastectomia, prefiro morrer, porque as minhas mamas, para mim, são uma parte crítica da minha identidade.
SUSANA ALMEIDA 00:17:59 Eu não consigo imaginar me sem elas e, portanto, uma delícia, mesmo com gravidade. Um caso que me recordo e tivemos que trabalhar isso muitíssimo bem. E foi possível fazer a cirurgia de uma forma mais poupadora para ela conseguir lidar com o processo. Mas também já tive pessoas para quem o cabelo era a nossa, que chamávamos a essa paciente Rapunzel. O cabelo era a identidade. Era um cabelo gigante, maravilhoso, de um volume e de uma beleza que de facto, era a identidade que ela sempre reconheceu em si. Tenho o cabelo comprido desde pequenino, portanto, partindo do princípio genérico que nós valorizamos sempre são órgãos que, dentro da sua individualidade, da sua singularidade, da sua forma e do seu e da sua textura, contexto, etc, São profundamente íntimos e normalmente são órgãos eróticos a que se atribui o sentido erótico. A maior parte das pessoas, curiosamente, passa por isso de uma forma brilhante. Custa, mas nós podemos facilitar isso. E se no início há uma certa timidez e até há mulheres que não gostam de se destapar ou descobrir para quem estar nu em presença da pessoa que é o seu objecto de amor e da pessoa com quem partilha a sua sexualidade.
SUSANA ALMEIDA 00:19:15 É quase horrível. Horrível no sentido de eu tenho medo que eu não me vejas como algo desejável. Eu tenho pânico em que eu deixo de ser um objecto de amor para ti ou de desejo. E nesse sentido, o que é surpreendente é que a pessoa que de facto se importa e tem uma relação madura e de grande qualidade com quem passa por uma coisa dessas, não vê isto todo como um obstáculo. A maior parte das pessoas passa por isso. Se tiverem uma relação sã, se tiverem uma relação sã, conseguem ultrapassar esse obstáculo. O mesmo para o homem e apesar de não se ver na próstata, mas às vezes há cancros do pénis ou do testículo também passam por isso.
JORGE CORREIA 00:19:57 Já aprendi agora nesta conversa que o sexo fraco afinal é o dos homens. Então é exemplos de homens que afinal se tenham portado surpreendentemente bem neste processo e que é que a Susana tenha tenha acompanhado.
SUSANA ALMEIDA 00:20:14 Eu nem sequer consideraria que o sexo fraco é o dos homens. Eu pensei que as mulheres, na nossa cultura, porque também trabalhei na cultura anglo saxónica, fiz a minha especialidade em Inglaterra.
SUSANA ALMEIDA 00:20:24 Eu acho é que as mulheres na nossa cultura têm uma posição mais estoica, se quiserem, geracionalmente, Realmente são as pessoas que são expectáveis serem cuidadoras dos mais velhos, mesmo quando não são os seus pais, quando são só as noras. E esse contacto mais se calhar natural, com um corpo doente e vivido pela mulher que de uma forma mais natural do que o filho ou o genro. Portanto, o corpo que adoece normalmente fica mais recatado e é observado mais pelas mulheres. Esse foi assim que se foi educado cá menos e, portanto, é uma forma mais natural de ver o corpo doente por parte da mulher, por parte do homem. Mas não concebo que seja de todo fraco e vejo, de facto, cuidadores masculinos que são extraordinários. Como é que um homem extraordinariamente, Posso lembrar me, por exemplo, de um caso fora de série porque é fora de série e nem sequer é uma atração sexual direita. Um doente meu que nem sequer é meu doente. Ele nunca foi meu doente. Ela foi só um homem que eu pude acompanhar porque ele nunca adoeceu Do ponto de vista psiquiátrico, até foi uma doença oncológica muito complicada.
SUSANA ALMEIDA 00:21:30 é uma doença oncológica que o obrigou desde pequena a fazer cirurgias e uma tipo de cancro que aparece repetidamente porque é hereditário. Portanto, ele a fazer esta série de cirurgias ficou com aquilo que a gente chama sacos à exaustão. Portanto, ele ficou com quatro ostomia, Jorge, quatro dores urinárias e duas daquilo que a gente chama colostomia do cólon. Portanto, ele ficou com dois sacos à frente. Como é que se sobrevive? E com a dignidade e um brilho que não tem no chão? Este homem veio à minha consulta muito triste e disse me que esta última cirurgia tinha sido o fim do seu relacionamento, que ele tinha que se divorciar. E eu perguntei então porquê ele? Porque a minha mulher é linda, maravilhosa e eu não posso obrigá lo a viver com uma pessoa como eu. Fica. Portanto, eu preciso de me divorciar para que ela possa ser feliz e encontrar a felicidade com outra pessoa que lhe possa proporcionar o que eu não consigo. E eu disse Mas não percebo. Então vocês não são felizes e gostam um do outro? Como é que acha que ela agora vai ser feliz só porque.
SUSANA ALMEIDA 00:22:31 O meu doente, vamos chamar de António, adoeceu. Ele diz Então amar é libertar. E nós éramos autores, não tem noção. Nós éramos profundamente realizados sexualmente. Como é que eu posso impor a minha mulher esta limitação horrível? Tem noção do que é Dois sacos à frente e dois sacos atrás? O medo que isto de escola, o medo que transborda, o medo que haja uma fuga inadvertida. Isto é uma. Isto é muito difícil. Olha, não foi nada difícil. Nós chamamos o casal, tivemos aqui umas reuniões a dois e depois a três. A mulher dele era extraordinária também e eles encontraram um equilíbrio satisfatório e muito realizado para poderem ver a sua sexualidade. E sabe qual é a ironia? Passados dois anos, foi ela que adoeceu com cancro da mama. E sabe o que é que é engraçado? Já sabe, claro. Eles viveram muitíssimo melhor essa, essa doença, porque sabiam exatamente o que era preciso fazer para que as coisas corressem bem.
JORGE CORREIA 00:23:37 O que é que acontece? Estávamos a falar agora aqui deste vou me divorciar para a libertar.
JORGE CORREIA 00:23:43 Quando acontece? Quando acontece exactamente o divórcio? Mas pelas más razões que é alguém que sofreu uma doença oncológica e que ainda por cima, quando chegou a casa recebeu mais uma notícia que é essa pessoa que está está lá em casa, diz que se vai embora, que não aguenta.
SUSANA ALMEIDA 00:24:02 Sim, isso é um bocadinho o início da conversa, não é? Naquela sucessão de perdas que às vezes sucede. É triste e às vezes é por isso que eu posso ir à sala de espera. Às vezes nós vemos pessoas que chegam acompanhadas e nós percebemos na primeira consulta ou na segunda que a relação é frágil, tem ali vulnerabilidades complicadas que já vem de trás. A doença é só uma espécie de reforço dessas vulnerabilidades. E às vezes a terceira consulta já não está lá ninguém. A pessoa já vem sozinha, é a quarta ou a quinta. Confirma se que houve uma separação. E habitualmente as pessoas têm o entendimento de o meu marido não aguentou, a minha mulher não conseguiu mais e, portanto, o casamento não sobreviveu à doença.
SUSANA ALMEIDA 00:24:46 Algumas pessoas com mágoa, algumas pessoas com rancor, outras pessoas com naturalidade, até quase que um alívio, como se aquilo fosse uma coisa que já era má. E então, olha, mais vale sozinho que mal acompanhado. Portanto, temos sempre surpresas. As pessoas não vivem como nós esperamos, vivem como elas próprias aprendem e nos ensinam. E no nosso processo. E essa é ajudar as pessoas nesse caminho. O que é fabuloso ao trabalhar cá é que a gente percebe que a maior parte das pessoas tem de facto um crescimento pós traumático. Ou seja, eu não sou igual e tive muitas perdas com a doença. Mas eu sei melhor o que quero e sei melhor escolher. E parece que aquele caminho que agora se abre é exatamente o caminho que eu quero traçar, que é uma coisa que nós, quando não temos dificuldades físicas, relacionais, quando temos aquilo que a gente se chama a ideia da imortalidade, porque somos jovens e nunca percebemos o que poderá ser correr mal antes de chegar à velhice. Porque a gente jovem não é tudo falado de gente jovem, sei lá, pessoas com menos de 30 anos ou 40 acham sempre que se olhar para frente eu vou viver até os 80 ou até os 90 de acordo com estas estatísticas e tudo irá correr mais ou menos bem.
SUSANA ALMEIDA 00:25:57 Se eu tiver os meus sapatos feitos e tiver alguns cuidados. Porém, não é bem assim, né? É o que é. O que é fantástico é a gente perceber que a maior parte das pessoas, depois de um processo de adaptação, é duro. Às vezes demora umas semanas, encontra um caminho e um caminho que lhes faz sentido. Um caminho muito difícil de encontrar, mas que é profundamente rico em significado. Ou seja, eu sei quem são as minhas pessoas? Não sei quem são os meus amigos e eu sei que amo quem eu quero passar tempo. Eu sei o que é que gostaria de fazer ao meu tempo. E não é de uma forma supérflua ou bacoca do género vou deixar de trabalhar para gozar a vida. Não é nada disso. Às vezes as coisas que me deixam sempre com vontade de rir e de uma forma genuína é que o tempo não é um dado adquirido. A qualidade de vida não é um dado adquirido à sobrevivência nem nada adquirido. Portanto, tenho que fazer o melhor que posso com o que tenho.
SUSANA ALMEIDA 00:26:49 E isso nós vemos.
JORGE CORREIA 00:26:50 É uma espécie de restauro que vem das cicatrizes onde fundamos a nossa forma de ser e de estar, precisamente.
SUSANA ALMEIDA 00:26:57 Até tecnicamente, entre pessoas que trabalham na oncologia. Nós chamamos a isto um crescimento pós traumático e é magnífico de ver. Nós acompanhamos a pessoa, faz o caminho, fazemos umas dicas e refletimos com ela o que possa ser. Mas é engraçado pessoas com muito poucas opções, com aquilo que chamaríamos comumente um caminho curto Conseguem vivê lo com uma plenitude e uma verdade em paz.
JORGE CORREIA 00:27:26 Muitas vezes falamos agora da questão da imortalidade, da finitude. Como é que. Como é que presumo que a conversa do fim esteja sempre inerente quando não estamos a falar de doenças tão importantes e relevantes como como esta? Como é que? Como é que se lida com isto? Como é que se lida com esta ideia do fim da morte?
SUSANA ALMEIDA 00:27:51 Olha, é um bocado como a ideia da sexualidade. Há coisas que de que a gente não fala, exceto se nos perguntarem ou se nós nos sentimos mesmo muita necessidade de falar.
SUSANA ALMEIDA 00:28:00 É quase como se fosse um reduto de privacidade, com uma uma sentença de quase que é feio. Porque é que eu ia falar da morte com alguém que está a tentar tratar me? Ou porque é que eu havia de trazer a morte à baila quando a pessoa está a tentar fazer o seu melhor para me curar um bocadinho. O psiquismo do doente que chega a um instituto oncológico para tentar curar se, acha muitas vezes que o médico está demasiado ocupado com os tratamentos para ser possível colocar a questão sobre. E agora? Como vai acontecer quando? No fundo, a pergunta subjacente é eu vivo? Eu sobrevivo? E muitas vezes as pessoas não conseguem fazer a pergunta. O que nós tentamos é que esse assunto possa ser conversado cedo. Se nós vemos que as coisas estão a descarrilar, é muito importante que esse assunto possa ser discutido e discutido num sentido construtivo, para que a pessoa depois não seja apanhada numa situação de não poder tomar decisões ou não ter tempo para tomar decisões, porque achava que o horizonte era mais largo do que na verdade era.
SUSANA ALMEIDA 00:29:06 Eu tenho muito a ver com a deficiência, com a justiça e eu preciso de tempo para fazer algumas coisas que o doente partilha connosco, que são muito importantes. Portanto, eu tenho. Não vou dizer que o horizonte é tanto tempo ou é realmente um horizonte sem esperança? Isso não é? Não é assim que se faz. Mas falar da morte.
JORGE CORREIA 00:29:24 E depende muito das culturas, porque falamos a um bocadinho das consultas das culturas mais anglo saxónicas, onde vemos as coisas serem discutidas com mais crueza. Se calhar é na nossa cultura, mais com base nos influenciados, naquilo que nós percebemos que podemos perguntar ou aquilo que não perguntamos bem, mas queremos saber a resposta.
SUSANA ALMEIDA 00:29:45 Sim, mas é engraçado. A transcultural mente, independentemente do pragmatismo. De facto, eu, que não tenho muito quando estava lá, é que as pessoas não têm. Não rodeiam as questões e perguntam as mesmas perguntas. Numa cultura anglo saxónica, Podem vir, podem ser curtas e simples, mas podem ser uma pergunta a parte ao lado e sei lá.
SUSANA ALMEIDA 00:30:06 Imagine quantos tratamentos eu tenho daqui para a frente, se eles são todos os meses, quantos tratamentos é expectável que eu faço e as pessoas estão a fazer juízos que têm, Portanto, muitas vezes a pergunta é no fundo eu estou capoeira? É esta? Esta é a sensibilidade que nós temos que ter e perceber o que está a ser dito, para lá do que está a ser verbalizado. E muitas vezes, aquilo que a pessoa precisa é só ser pacificada, que há muito a fazer, que há um caminho a percorrer. Com o tratamento hoje em dia é muito mais eficaz do que o que foi que vamos apostar na qualidade de vida, proporcionar e estar atentos àquilo que, para ela ou para ele é importante? Conseguir conciliar, por exemplo, as pessoas valorizam muito uma coisa extraordinária, que é o controlo. Eu hoje estive aqui, amanhã tenho consulta maravilhosa que me dizia Doutor, eu só preciso de me organizar. Eu sou muito metódico. Eu só preciso me organizar. Quando me dizem não sei o que vai ser o seu tratamento a seguir à cirurgia, eu fico aflita e para mim é melhor saber.
SUSANA ALMEIDA 00:31:03 Quimioterapia dez sessões e eu já me organizo do que ficar assim uma espécie de algo no ar. E ela tem razão. É uma mulher de 50 anos que trabalha, ativa, trabalha por conta própria. Preciso saber quanto tempo é que vai estar fora do trabalho, como é que se vai organizar, se vai precisar de mudar, se tem dinheiro para pagar as contas. Isto é a nossa vida e, portanto, dá às pessoas um bocadinho de controlo e crítico. Voltando à pergunta sobre como é que se fala sobre o fim quando a pessoa estiver preparada? Quando vemos que as coisas estão a correr mal e havendo sempre a disponibilidade da nossa parte de falar sobre coisas que são difíceis e às vezes nós só conseguimos mostrar disponibilidade de falar coisas quando são difíceis, quando mostramos esperar para falar o que quer que seja e particularmente quando valorizamos qualquer pergunta, seja ela a pergunta mais descabida. E podemos começar por dizer isso não a perguntas descabidas. É importante que me fale das suas preocupações, sejam elas quais forem.
JORGE CORREIA 00:31:58 Susana, eu estou a pensar naquilo que é o seu dia a dia.
JORGE CORREIA 00:32:03 Todos os dias alguém entra dentro desse consultório, seja doente, seja um colega profissional com um imenso saco cheio de dores e de angústias e de. Como é que se lida com isto? Não profissionalmente. Quando vai para casa e tem essas coisas todas lá dentro, dentro de si, dos seus ouvidos, da sua mente. Como é que se. Como é que se funciona? Como é que se sobrevive a isto?
SUSANA ALMEIDA 00:32:35 Eu ainda acho, por muito que às vezes é difícil, de facto. E muitas vezes eu vejo mais coisas tristes, coisas que me deixam feliz, mas vejo muitas coisas que me deixam feliz e muitas das coisas que me deixam feliz quase que validam as que me trouxeram Triste. E o que é que é triste? E o que é que é feliz? Feliz é conseguir que alguém que esteja muito doente encontra momentos em que está tranquilo, seja junto da sua família, seja aliviado, sem ter dores, a conseguir dormir, a conseguir a casa, a conseguir comer, ir à mesa, ir à mesa.
SUSANA ALMEIDA 00:33:03 No Natal. Às vezes nós damos de barato coisas que as pessoas valorizam tanto. Fazer uma videochamada, alguém que não está habituado ou familiarizado com mídia a fazer uma vida chamada conflito, que está a estudar longe Todas essas pequenas coisas nós estamos de fato, nós aqui parecem coisas triviais, mas a nós damos muita satisfação, pois facilitá las é o grande sentir, minorar a angústia, minorar a ansiedade, possibilitar que a pessoa se sinta menos depressiva. Tudo isso é muito importante e dá nos uma enorme sensação de prazer. E o que é engraçado é que é. Acho que isto ajuda a perceber. Os doentes graves valorizam imenso estes pequenos acrescentos. São têm uma forma de de nos devolver essas melhorias que é quase. Eu costumo dizer que é quase um egoísmo altruísta da parte do médico. Eu sinto me feliz também e nesse sentido, e ao vê los bem, fazem faz me faz com que eu me sinta bem e portanto, eu de facto levo muito daqui. Agora, quando eu perco um doente, quando os dentes morrem, quando a gente os acompanha até o fim ou quando a gente sente que as coisas estão a agravar ou estão a perder muita qualidade de vida, custa horrores.
SUSANA ALMEIDA 00:34:18 Não há dúvida que custa horrores. Custa muito E nós temos várias coisas que nos ajudam. Falamos entre nós, temos uma equipa muito coesa e vamos falar entre nós em intervenção, se quiser, ou em supervisão com outros colegas fora de cá, em sigilo absoluto, para nos ajudarem a ver outros ângulos ou a tentar perceber o que é que poderia ser feito. Mas também é muito importante, dizem uns aos outros. Nada de especial. Anonimamente, discutimos as situações para que tenhamos uma validação de que estamos a fazer tudo o que é possível ser feito. Nós só somos uma cabeça, dois olhos. Portanto, pode haver alguma coisa que nos esteja a escapar. É essa intervenção que é a discussão entre pares dentro desta, desta especialidade ou com outros colegas. No caso, é um bocadinho o suporte da intervenção psicoterapêutica É muitíssimo importante para recompormos aqui. Alguma intersubjetividade. Objetividade? Nunca. Mas pelo menos há uma intersubjetividade que nos ajuda a perceber se não falhou nada. Mas há outra coisa que eu acho que é crítica e é uma coisa que eu aprendo tanto, tento aprender, aprendo.
SUSANA ALMEIDA 00:35:25 Já é um bocado arrogante. Tento aprender com o que vivo todos os dias na minha profissão que adoro, que é. O que é que eu tenho que fazer para viver o melhor possível a minha vida, para estar ao melhor nível, para ajudar estas pessoas? Ou seja, nós sabemos muito bem e temos a obrigação de saber muito bem o que é também a prioridade e, portanto, uma vida estável e realizada fora do trabalho, com autocuidado, com todas as medidas que nos fazem felizes, são diferentes entre pessoas, são críticas para se trabalhar bem e, portanto, eu vou para casa ansiosa por ir para casa. Adoro ir para casa, adoro. É parte das pessoas que gosto muito e fazer as coisas que gosto como exercício físico com eles, caminhar na natureza, fazer o que gosto de facto. Mas isso é também uma responsabilidade. Eu tenho que o fazer para poder cuidar bem dos meus doentes e eu não posso levar os meus doentes para apenas com os que gosto. Às vezes levo aquilo para a faculdade e eu tenho duas filhas e às vezes elas, desde pequeninas, são miúdas perspicazes.
SUSANA ALMEIDA 00:36:33 E olhavam me. Diziam Nem hoje estás um bocadinho triste. E eu explicava, sem grandes pormenores, que de facto estavam tristes porque tinham doente, que não estava tão bem como eu gostaria. E elas diziam sempre Andávamos sempre com palavra de consolo. É engraçado. E porque.
JORGE CORREIA 00:36:50 Isso? As crianças conseguem ver nos quase como um aquário? Nós mostramos na cara aquilo que sentimos. O que me leva a perguntar Aí está a energia para para para aquele dia que foi mais difícil. Como é ter que ajudar Para uma família de uma criança que tem uma doença oncológica.
SUSANA ALMEIDA 00:37:13 Olha, eu acho que é das coisas mais difíceis que a minha profissão encerra e eu tenho uma colega que é dedicada a isso cá no meu serviço. Ela é extraordinária e isto traz um peso devastador, porque é uma exigência. Nós, como seres humanos, temos muita tendência à identificação. Nós somos até isto, identificação projetiva. Nós sentimos o outro porque imaginamos. E se fosse eu a perder o meu filho, não é? E é uma situação de empatia extrema.
SUSANA ALMEIDA 00:37:39 É muito difícil às vezes ultrapassar isso e, portanto, implica que a pessoa consiga estar bem e com a distância certa para manter os limites dessa própria relação. Aliás, nesses momentos da relação são muito importantes para que não seja uma relação de simpatia e passa a ser uma relação terapêutica que é só da empatia, é só empatia. É muito bom porque quando nós passamos para lá da simpatia, nós estamos com os amigos, choramos com eles e nós não podemos chorar com os doentes sem sentir que nós aguentamos a dor deles e estamos lá para suportar e para cometer. Porque no fundo, nós aguentamos e estamos lá disponíveis. É sinal que há esperança, há um caminho. Não é um apoio, mas é um trabalho complicado. A grande, grande maioria das crianças, felizmente, passa por isto e sobrevive. Mas não há. Não há maioria que não nos traga mágoa dos que não passam pela sobrevivência. Portanto, é um trabalho muito difícil e eu admiro extraordinariamente os meus colegas da pediatria oncológica e os meus colegas dentro do serviço que se dedicam a estas situações.
SUSANA ALMEIDA 00:38:44 E eu não me dedico particularmente. Mas pode acontecer.
JORGE CORREIA 00:38:48 O que é que uma psiquiatra faz ou usa para sobreviver quando se sente que se está a ir abaixo?
SUSANA ALMEIDA 00:38:57 Excelente pergunta. E nós, ainda por cima temos a responsabilidade de olhar também para os nossos pais. Nós aqui no serviço temos uma consulta de psiquiatria na Suíça ocupacional que realizam, em que tentamos ajudar os nossos colegas que estejam mais em risco de sobrecarga profissional de adoecer, como até que já disseram também ajudá los nisso. Primeiro temos estar atentos. É muito fácil chegar à Linha Vermelha. Nós, quando damos por ela, já passamos à laranja. Isso acontece porque? Porque há um sobre envolvimento com as outras coisas e há uma característica pessoal que nos vulnerabiliza para o Arnault, que é o excesso de motivação.
JORGE CORREIA 00:39:39 Os profissionais não não cuidam muito de si próprios.
SUSANA ALMEIDA 00:39:42 Os profissionais às vezes não cuidam muito de si próprios, particularmente quando são tão motivados que estão sempre disponíveis. Nós até dizemos que são as pessoas mais altas, motivadas e com um nível de tolerância e disponibilidade emocional muito alto, que são mais vulneráveis e as pessoas que são mais frias e que se afastam mais deste tipo de interações normalmente não são as que são chamadas para substituir alguém ou que estão disponíveis para ir falar com a família e, portanto, as pessoas que já trabalham muito e trabalham bem são as pessoas normais mais disponíveis para continuar a trabalhar em excesso e, portanto, são essas que são mais predispostas a adoecer.
SUSANA ALMEIDA 00:40:14 E nesse sentido, porque se preocupam se vão entrar por horas fora de horas de serviço e se vão dar mais horas e mais horas. Obviamente que há uma coisa que vai ficar sacrificada, que é o autocuidado. Vão dormir menos, vão fazer menos exercício, vão estar menos tempo com a família e você ter remorsos e vão sentir culpabilidade. E a partir daqui instala se uma espécie de campo minado, não é? Se eu não tenho, se eu não estou bem em casa porque chego tarde e a minha família recrimina, eu vou chegar triste ao trabalho e vou sentir me revoltada com o trabalho que está a estragar a minha vida pessoal. E quando se dá por ela, todas, todas as áreas estão infestadas de maus sentimentos. E a gente sente porque é que eu ia tentar medicina se a medicina me está a fazer isto a mim? E acontece o grau, o último do Arnaldo, que é a despersonalização. Eu, que tanto quis ser médico e que foi um médico tão bom. Mas sentir empatia e deixo de gostar da minha profissão que me deixa de trazer, já não traz realização pessoal e é tristíssimo.
SUSANA ALMEIDA 00:41:10 Portanto, como é que a gente se cuida? Como é que a gente se, se, se olha? Primeiro, a principal garantia como profissional no campo, Arnaldo, tem que ser institucional. A instituição tem que olhar para os profissionais, tem que lhes garantir condições para trabalharem dentro do limite. Porque se a própria instituição quebra o limite e pede mais e mais e mais, se não protege os tempos, os turnos, o excesso de horas. Obviamente, por muito que eu tenha cuidado comigo próprio, estou sempre em risco. E depois há uma característica também institucional que que tem a ver com o desentendimento com a organização superior. Se eu, como profissional, estou em desacordo com as minhas chefias ou até se tenho um conflito ético com o meu líder imediato, porque eu vejo as coisas a serem feitas de uma forma com a qual não me identifico. Muitas vezes há um fator de risco também para para esse mesmo burnout e nós não podemos. Deixar de desatender aquilo que é uma obrigação nossa entre pares, como foi a intervenção de falarmos entre nós de doentes dentro do anonimato e do sigilo? Também é muito importante se ouvir um colega que antes era muito entusiasta, prestável e amável, ficar triste, baço e até arisco, irritável.
SUSANA ALMEIDA 00:42:34 Uma pessoa que já não fala comigo ao telefone. Sou um doente com o mesmo gosto que sempre falou e eu tenho a obrigação de perguntar então o que se passa contigo? Tu estás bem? Precisa de alguma coisa? Eu não posso passar pelas pessoas sem verificar ou tentar perceber se há alguma coisa que eu possa fazer. Afinal, nós também somos profissionais e, nesse sentido, os médicos têm uma obrigação de autor. Eu não diria. Nós não podemos estar a ser médicos uns dos outros, mas temos que estar pelo menos atentos. Acho que é um dever.
JORGE CORREIA 00:43:06 Tem que haver uma espécie de missões de resgate de vez em quando, quando nós vemos que o outro se está a afundar.
SUSANA ALMEIDA 00:43:11 É o mínimo E o ideal é antes de ele se afundar. E quando percebemos que alguma coisa está a mudar e não é uma coisa tuga de cusquice, ataque de sapateiro não é nada disso. A psicologia não tem de enfrentar alguma coisa que se possa fazer. Alguma coisa. Só isto. Não te vejo cansado. Estás triste? O que é que se passa contigo? Há qualquer coisa que tem que ser feita em privado, mas na mesa da cantina tem que ser no recato da privacidade.
SUSANA ALMEIDA 00:43:42 Não podemos aparecer no gabinete e perguntar entre dentes está tudo bem contigo ou no fim das consultas ou ligar ao fim do dia. Mas é importante. É mesmo importante possibilitar a pessoa reflectir que talvez não esteja bem, porque o próprio às vezes uma nota de tamanho.
JORGE CORREIA 00:43:58 Quando eu olho para os médicos, vejo os como uma profissão que dificilmente tolera a ideia de falhar, de que algo que eu não consegui salvar esta doente, resgatar este, este, este doente. Como é que é a conversa entre médicos nesses nesses momentos em que em que não foi possível?
SUSANA ALMEIDA 00:44:22 Eu acho que é muito triste. E todos nós precisamos de suporte nesses momentos. Há colegas que não falam. A gente só vê que eles estão transtornados. Mas eles precisam do seu tempo e do seu espaço para poder processar a coisa. É engraçado. Nós a cada vez mais falamos do luto dos profissionais. Nós temos que identificar que custa e é possível. E é desejável até haver uma expressão emocional depois de um acontecimento destes. É um bocado como na perda de alguém que a gente gosta muito.
SUSANA ALMEIDA 00:44:55 Nós vamos sempre fazer uma espécie de autópsia emocional. O que é que eu devia ter feito? O que é que eu podia ter feito mais? O que é que eu não fiz? E se nós fazemos isso com o ente querido que está na nossa casa, ou que passou por nossa pela nossa vida, então, quando temos a responsabilidade de cuidar dessa pessoa, isso ainda se torna mais avassalador. E depois há características de cada um, não é? Há pessoas que são mais obsessivas e muito perfeccionistas e levam isso de uma forma pessoal. Há pessoas que, se calhar, às vezes a experiência ajuda a perceber que, apesar de tudo o que pudessem ter feito, havia coisas que não dependiam de si e que estariam, se calhar muito mais na dependência da natureza, do problema e das circunstâncias da pessoa para correrem menos bem. Mas é importante. Seria crítico que as pessoas pudessem também, num sítio seguro e num ambiente seguro, normalmente entre pares, poder falar disso, nem que fosse dentro da equipa, brevemente sinalizar.
SUSANA ALMEIDA 00:45:46 Engraçado, nós temos uma estrutura que é uma espécie de uma terapia chamada Grupos de Balint, que são grupos de suporte para profissionais. em que as pessoas podem exatamente falar ao abrigo do sigilo como líder, que é o nome de um psicoterapeuta sobre as coisas que sentiram como difíceis na profissão. E esses comportamentos são particularmente úteis nessa reflexão. Por exemplo, às vezes não é só perder em uma coisa que correu menos bem uma amputação que nós nunca esperaríamos que sucedesse termos transferiram dentro para cuidados paliativos.
JORGE CORREIA 00:46:24 Eu quero resgatar esta conversa. E tu é a esperança da esperança como? Como motor de de conseguir coisas que se calhar nem a ciência consegue explicar assim logo à primeira vez.
SUSANA ALMEIDA 00:46:37 A esperança é 1A1 força motriz épica. Aliás, a esperança não se pode mesmo castrar a esperança. Cada um sabe o que tem e eu vejo pessoas com esperança nas últimos no último mês de vida e a esperança é só de passarem esse mês. Bem, quem sou eu para dizer que essa pessoa. As vezes a semântica e o léxico é devastador e a gente nem tem noção do que diz.
SUSANA ALMEIDA 00:47:04 Imagine dizer a um colega que está a tratar um paciente com tratamento quimioterapia, mas que por acaso é paliativo no sentido em que não pode tratar a doença até ao fim, mas está a tentar conter a doença. Quando se diz olhe, vamos ter de parar com esta linha de tratamento porque não há mais nada a fazer. Wow, isso é muito doente. Eu vou morrer, mas não é isso que ele está a dizer. O problema é que a semântica ou a escolha de palavras não foi feliz. E às vezes o que se pode tentar dizer não é uma lavagem às palavras, pondo lhes perfume e alfazema e dizer o que é verdade. Esta este tipo de tratamento está a trazer mais prejuízo que benefício. Felizmente há outros tratamentos que podem trazer muito mais qualidade de vida e essa qualidade de vida vai lhe permitir estar em casa, estar.
JORGE CORREIA 00:47:47 No papel do outro, ter essa empatia, tentar perceber o que é que cada palavra pode ter como impacto naquela pessoa que ali está connosco.
SUSANA ALMEIDA 00:47:56 Exactamente. As palavras pesam muito mais às vezes do que gestos.
SUSANA ALMEIDA 00:48:01 E quando nós notamos que andamos doentes, nós também estamos muito atentos. Não são só os psiquiatras estão muito atentos àquilo que está a ser dito. O doente está profundamente atento à comunicação do médico. E às vezes os doentes dizem A doutora Alice vai correr bem. Mas ao olhar para baixo, olha para o computador. A voz falhou lhe. Portanto, não foi isso que eu ouvi. E, portanto.
JORGE CORREIA 00:48:23 Uma coisa é o que diz a linguagem verbal, outra coisa é aquilo que diz a linguagem não verbal. Não posso deixar de perguntar os médicos são bons a contar más notícias? Eu acho que a maioria das pessoas, a maioria de nós, somos péssimos a contar más notícias más. Mas os médicos têm essa, têm essa obrigação, Treinam, isso.
SUSANA ALMEIDA 00:48:43 Sim. Por exemplo, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que é de onde eu venho, existe mesmo uma disciplina que se se caracteriza por treinar no pré graduado os estudantes de medicina, mas há muitas formações pós graduadas e até profissionais. Nós fazemos aqui no IPO, que prepara os profissionais para esses momentos.
SUSANA ALMEIDA 00:49:03 Há protocolos quase tão protocolado como alguns procedimentos cirúrgicos e pode ser feito. E quanto mais difícil para a pessoa, quanto mais o profissional sente que tem dificuldade nesse gesto ou até responder às emoções do doente, mas deve treinar. São competências de comunicação que devem ser exercitadas até que a pessoa se sinta confortável na sua, na sua práxis. É sempre difícil e nunca podemos transformar uma má notícia numa boa notícia ou uma boa notícia. Afinal, só vai precisar de se fazer tirar a mama em vez de fazer quimioterapia. Onde é que isto é uma boa notícia? Percebe? Na nossa ideia, às vezes até parece que é preciso fazer a cirurgia. Não precisa de fazer quimioterapia, mas a pessoa Salvio, precisa tirar a mama. Portanto. não podemos ir ao ponto de tornar uma coisa que é mais uma coisa que pode ser menos má. Mas podemos falar com com verdade, de forma adequada, particularmente adequada ao contexto. A literacia e a cultura da pessoa que está à nossa frente foram pausadamente, permitindo fazer perguntas, tentando sempre reiterar que estamos a ser claros.
SUSANA ALMEIDA 00:50:12 Eu estou a ser claro. Isto é difícil de explicar. O ónus em meu coração é a pessoa tentar perceber. A senhora percebe o que eu estou a dizer? Não, eu não tenho perceber e vai ter que me fazer entender. Eu é que sou profissional e dar tempo para a informação. Pequenos passos permitem que a pessoa reflita à medida que está a ouvir, que se exprima emocionalmente, à medida que está a ouvir. Se nós fizermos isto assim, a pessoa se sai melhor do que o que a gente imaginaria. Se nós estamos treinados? Às vezes nós até nos esquecemos de ter a certeza que a pessoa não vem sozinha para um momento desses. Imagine alguém que trabalha aqui nesse hospital e que tem que ir para o Brasil ensaiar. Eu não posso dar uma má notícia para ele se for muito mal e depois deixar a pessoa ir embora às 19h00 para casa, para Bragança Aguiar. Ainda por cima se a senhora tiver 77 anos. Ou seja, há algumas coisas de cuidado, de preparação desse momento que nós temos que aprender a salvaguardar e preparar.
SUSANA ALMEIDA 00:51:10 E se quiser, Jorge, o maior obstáculo é a falta de tempo que nos dedicam para fazer isso. Acho que nós, médicos, precisávamos de mais tempo de consulta para fazer isso com a dignidade que o gesto merece.
JORGE CORREIA 00:51:20 No meio de tanta esperança, de tanta dor, de tanta dificuldade e de tanta superação. Podemos definir o que é que seria para si, Susana um dia rechonchuda? Mente bom.
SUSANA ALMEIDA 00:51:33 Mas parte dos dias são bons e isso é mensagem. Falamos em esperança em levantar isto. Eu diria que a maior parte dos meus dias são muito bons e às vezes eu paro a minha consulta e antecipo que possa ter uma primeira consulta até muito difícil e fico surpreendida como as pessoas vivem de facto a adversidade. Apesar das minhas expectativas, elas vivem com segurança, tranquilidade e nem precisam de mim. Podem para a vida delas sem um psiquiatra e muito -1 receita. Portanto, eu acho que um dia rechonchudo de coisas boas e um dia em que eu senti que vi pessoas que pude ajudar, eventualmente algumas diagnosticar e tratar, medicar.
SUSANA ALMEIDA 00:52:09 Eventualmente garantimos que as vou seguir e que as vou acompanhar. Muitas vezes lá está a doentes a quem eu não precisei de ajudar porque eles encontraram a sua forma de sair e às vezes só a oportunidade de reavaliar pessoas e perceber que muito mais depressa do que o que seria expectável, eles encontraram um caminho que as faz felizes. E é ter o privilégio de ouvir isso, ouvir as entrelinhas, ouvir as coisas que às vezes não são passíveis de ser contadas ou partilhadas noutras consultas, que estão mais sobrecarregadas em termos de Técnicos ou ou exigências de perícias. E eu penso que neste sítio há um sítio seguro para que as pessoas possam de facto partilhar aquilo que elas são e a vida que têm. E isso enche me o coração.
JORGE CORREIA 00:52:55 A luta contra as grandes adversidades recolhe forças nos dias bons, nos dias que passaram, nos dias que hão de vir. A alegria de um momento robusto de afetos funciona sempre como uma bateria e a esperança do melhor no futuro, como um dínamo de energia. Vale sempre ouvir, vale sempre falar.
JORGE CORREIA 00:53:12 Vale sempre ser humano na mais universal das suas definições. Até para a semana.
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Oficialmente é médica psiquiatra.
Na prática, é uma ouvidora profissional ajudando pessoas a quem foi diagnosticado cancro. Ouve doentes, famílias e profissionais que tratam esta doença no IPO do Porto.
Susana Almeida dirige o serviço de psiquiatria deste hospital.
Mas de facto é uma especialista em transformar dor em narrativa, sofrimento em resiliência e perda em oportunidade de crescimento.
No seu dia-a-dia aprendeu que a “A nossa cara diz muito sobre nós”, explicando que o trabalho de um psiquiatra começa antes mesmo de o doente nem sequer abrir a boca.
É no detalhe que Susana encontra o primeiro capítulo de cada história. O olhar desviado, a hesitação ao caminhar, a escolha das palavras — tudo é revelador.
Voltamos à observação da linguagem não verbal. Onde o gesto fala. E diz coisas que aa pessoas não conseguem colocar em palavras.
É como se a palavra angústia estivesse em cada trejeito, tremura ou olhar vago.
Claro, há o gesto e a palavra. Mas comunicar é também não comunicar.
Explico-me: o não dito é uma forma de dizer.
O desafio de Susana Almeida não é apenas escutar o que é dito, mas decifrar o que fica por dizer. A sua experiência diz-lhe que o confronto com uma doença grave é, muitas vezes, um momento de balanço.
O momento da nostalgia do que poderíamos ter sido. O confronto com as escolhas da vida. Porque escolhi ser isto e não aquilo. Porque decidi estar com esta pessoa e não outra. Ou nenhuma.
Perguntas sem resposta apaziguadora. E sem tempo para reviver.
Depois há o confronto com o corpo. Com a possível ou real mutilação.
Com o impacto no lar.
Ouvi a história de uma mulher que recusava a ideia de ter de tirar uma mama porque os seios eram parte fundamental e inegociável da sua identidade pessoal.
Mas este episódio não é só dor.
É uma conversa carregada de energia e esperança.
De pacificação, crescimento e possibilidade.
Bem-vindos à discussão milenar da condição humana.
Vale ouvir. Vale partilhar.
A luta contra as grandes adversidades recolhe forças nos dias bons.
Nos dias que passaram, nos dias que hão de vir.
A alegria de um momento robusto de afetos funciona sempre como uma bateria. E as esperança do melhor como dínamo de energia.
Vale sempre ouvir. Vale falar. Vale ser humano. Na mais universal das definições.
RESUMO
No Instituto Português Oncologia do Porto, num gabinete repleto de histórias não contadas, a psiquiatra Susana Almeida enfrenta diariamente as fragilidades da condição humana. Diretora do serviço de Psiquiatria, Susana Almeida é especialista em transformar dor em narrativa, sofrimento em resiliência e perda em oportunidade de crescimento. “A nossa cara diz muito sobre nós”, começa por explicar, sublinhando que o trabalho de um psiquiatra começa antes mesmo de o doente abrir a boca.
É no detalhe que Susana encontra o primeiro capítulo de cada história. O olhar desviado, a hesitação ao caminhar, a escolha das palavras — tudo é revelador. “A observação do não verbal é essencial. Como alguém chega à consulta pode dizer mais do que qualquer exame.” No IPO, onde os doentes frequentemente enfrentam diagnósticos de cancro, estes sinais tornam-se ainda mais importantes. “Muitas vezes, as pessoas não conseguem verbalizar a angústia, mas ela está lá, evidente nos gestos e na postura.”
O desafio de Susana não é apenas escutar o que é dito, mas decifrar o que fica por dizer. A sua experiência diz-lhe que o confronto com uma doença grave é, muitas vezes, um momento de balanço. “Há quem se foque no presente, mas muitos são assombrados pela nostalgia do que poderia ter sido. Escolhas que não fizeram, caminhos que não tomaram, relações que não cultivaram. É como se o tempo parasse num passado idealizado, mas a verdade é que o que não foi vivido não é garantia de nada melhor.”
Entre os relatos que marcaram o seu percurso, Susana recorda uma paciente que recusava a ideia de uma mastectomia. “Ela dizia: ‘As minhas mamas são parte crítica da minha identidade.’ Cada pessoa atribui valor ao corpo de forma única, e o papel do médico é ajudá-la a reconstruir essa relação consigo mesma.” Este apoio vai além da saúde física — trata-se de restaurar um sentido de identidade e dignidade.
Mas e quando a saúde mental de um doente colide com a dinâmica do lar? Susana explica que as relações, tal como os corpos, sofrem transformações sob o peso da doença. “Se o casal já tem uma boa comunicação, é mais fácil enfrentar os desafios juntos. Mas, se há lacunas ou tensões, estas tornam-se evidentes.” Em muitos casos, Susana convida os parceiros para as consultas, criando um espaço seguro para as dificuldades poderem ser discutidas. “A ideia é encontrar novas formas de conexão e intimidade. Muitas vezes, é um momento de reconstrução para ambos.”
Há um fio condutor que atravessa o trabalho da psiquiatra: a esperança. “A esperança é uma força motriz épica. Nunca devemos castrá-la”, afirma com a convicção de quem já viu o pior e o melhor da natureza humana. Mesmo em cenários de prognósticos difíceis, a escolha das palavras faz toda a diferença. “Não se trata de pintar um cenário irreal, mas de mostrar que, mesmo num contexto difícil, há caminhos a explorar. As palavras têm peso, e o tom certo pode ser decisivo.”
No entanto, este equilíbrio entre realismo e esperança exige muito dos profissionais de saúde. “Os médicos mais motivados são, muitas vezes, os mais vulneráveis ao ‘burnout’. Têm uma enorme disponibilidade emocional e acabam por negligenciar o auto cuidado.” No IPO, há mecanismos de suporte para a equipa de psiquiatria, incluindo supervisões regulares. “Precisamos de espaços para refletir, validar o que fazemos e apoiar-nos mutuamente.”
Quando lhe pergunto como encontra forças para lidar com tanto sofrimento, Susana sorri. “O que me move são as pequenas vitórias. Ver que um doente conseguiu voltar a jantar com a família ou que encontrou paz num momento de caos é o que me valida.”
TÓPICOS & CAPÍTULOS
[00:00] Introdução ao Tema da Comunicação em Momentos de Dor
O episódio aborda a importância da comunicação em momentos de dor extrema e vulnerabilidade, especialmente em situações de diagnóstico de doenças graves, como o câncer.
[00:12] Apresentação de Susana Almeida
Susana Almeida, médica psiquiatra e ouvidora profissional, fala sobre a sua experiência em ajudar doentes diagnosticados com cancro e as suas famílias.
[00:46] A Linguagem Não Verbal na Psiquiatria
A importância da observação da linguagem não verbal e como os psiquiatras interpretam sinais antes mesmo do doente falar.
[01:46] O Confronto com a Doença e a Identidade
Discussão sobre como a doença pode levar a reflexões sobre escolhas de vida e a identidade pessoal, incluindo a resistência e superação.
[03:01] A Comunicação em Casais Durante a Doença
Como a comunicação entre casais pode ser afetada por diagnósticos de doenças graves e a importância de abrir diálogos sobre intimidade.
[04:50] A Importância da Observação no Atendimento Psiquiátrico
A prática de observar o comportamento e a aparência dos doentes como uma ferramenta diagnóstica.
[06:34] A Coerência entre Verbal e Não Verbal
A busca por coerência entre o que é dito e o que é comunicado através da linguagem não verbal.
[09:04] O Papel do Psiquiatra no Acompanhamento de doentes com Câncer
Como os psiquiatras auxiliam os doentes a lidar com o medo e a imprevisibilidade da doença.
[10:24] Nostalgia e Reflexão sobre Escolhas de Vida
A ideia de nostalgia em relação ao que poderia ter sido, especialmente em momentos de crise.
[12:44] A Comunicação sobre Mutilações e Identidade
Discussão sobre como as mutilações afetam a identidade e a sexualidade, e como isso é abordado em casa.
[14:12] Abertura de Diálogo em Casais
A importância de ter um histórico de boa comunicação para lidar com questões difíceis.
[16:09] Consultas com Parceiros
A prática de incluir parceiros nas consultas para facilitar a comunicação e o apoio mútuo.
[19:57] A Superação de Mutilações e a Relação
Como casais podem encontrar novas formas de intimidade após uma mutilação.
[22:31] O Impacto da Doença nas Relações
Reflexão sobre como a doença pode revelar fragilidades nas relações e levar a separações.
[25:57] Crescimento Pessoal Após a Doença
A ideia de crescimento pós-traumático e como as pessoas se reavaliam após experiências difíceis.
[27:51] A Conversa sobre a Morte
A dificuldade de abordar a morte e como isso varia entre culturas.
[30:06] A Importância da Comunicação Clara
A necessidade de uma comunicação clara e sensível sobre a morte e o tratamento.
[32:35] O Cuidado Pessoal dos Profissionais de Saúde
A importância do auto cuidado para os profissionais de saúde e como eles lidam com a carga emocional do trabalho.
[35:25] O Luto dos Profissionais de Saúde
A necessidade de processar a perda de doentes e o suporte entre colegas.
[39:39] A Responsabilidade dos Profissionais de Saúde
A importância de cuidar de si para poder cuidar dos outros.
[43:06] A Esperança como Força Motriz
A esperança como um elemento essencial na vida dos doentes e como isso é percebido pelos profissionais.
[47:56] A Comunicação de Más Notícias
A formação e a importância de comunicar más notícias de forma sensível e clara.
[51:33] Conclusão sobre a Prática Psiquiátrica
Reflexão sobre a satisfação que vem de auxiliar os doentes e a importância de ouvir e entender as suas experiências.
Transcrito Automaticamente Com Podsqueeze
JORGE CORREIA 00:00:12 Ora vivam! Bem vindos ao Pergunta Simples o vosso Podcasts sobre Comunicação. Não encontro momento mais importante para comunicar do que aquele instante em que sentimos uma dor extrema ou uma vulnerabilidade infinita. Porque é necessário, porque é relevante e porque ajuda muito. Podemos fazer uma lista infinda de situações em que a dor, a fala e a escuta se encontram. Mas poucas situações se comparam às da perda de vida humana ou de grave ameaça sobre a sobrevivência. Este programa é sobre a forma como reagimos, como pedimos ajuda e confessamos os nossos mais íntimos sentimentos. Em particular quando alguém nos informa de um diagnóstico terrível, uma edição sobre coisas difíceis, mas também sobre esperança contagiante e resistência humana às maiores adversidades do mundo. Oficialmente é médica, psiquiatra na prática e uma ouvidora profissional ajudando pessoas a quem foi diagnosticado cancro. Houve doentes, houve famílias e até houve profissionais que tratam esta doença o cancro no IPO do Porto. Susana Almeida dirige aí o serviço de Psiquiatria, mas de facto é uma especialista em transformar dor em narrativa, sofrimento em resiliência e perda em oportunidade de crescimento no seu dia a dia.
JORGE CORREIA 00:01:46 Aprendeu que a nossa cara diz muito sobre nós. Explicando que o trabalho de um psiquiatra começa mesmo antes do doente sequer abrir a boca. É no detalhe que encontra o primeiro capítulo de cada história. O olhar desviado, A hesitação ao caminhar, a escolha das palavras. Tudo é revelador. Voltamos à observação da linguagem não verbal, onde o gesto fala e diz coisas que as pessoas não conseguem colocar em palavras. É como se a palavra angústia estivesse em cada trejeito, em cada tremura ou em cada olhar vago, claro, ao gesto e à palavra. Mas comunicar é também não comunicar. Eu explico me. O não dito é uma forma de dizer. O desafio de Suzana Almeida não é apenas escutar o que é dito, mas decifrar o que ficou por dizer. A sua experiência diz lhe que o confronto com uma doença grave é muitas vezes um momento de balanço, um momento da nostalgia do que poderíamos ter sido entre as escolhas da vida. Porque escolhi ser isto e não aquilo, Porque decidi estar com esta pessoa e não com aquela? Perguntas sem resposta, apaziguadora à primeira vista e sem tempo para as poder reviver, Afinal, são coisas que ficaram lá atrás no passado.
JORGE CORREIA 00:03:01 Depois, ao confronto com o corpo, com a possível ou real mutilação com impacto no lar, Lá em casa eu vi, por exemplo, a história de uma mulher que recusava a ideia de ter de tirar uma mama por causa do seu tratamento, porque os seus seios eram parte fundamental e inegociável da sua identidade pessoal. Mas este episódio não é só sobre dor, é também sobre superação numa conversa carregada de energia e de esperança, de pacificação, de crescimento e de possibilidade. Bem vindos à milenar discussão sobre a condição humana. Susana Almeida, médica psiquiatra, dirige neste momento o Serviço de Psiquiatria do IPO do Porto. Estávamos aqui a falar naqueles testes que se fazem sempre antes de começar uma gravação sobre a questão da nossa imagem, como é que é e como o penteado está melhor, não está? Eu estou bem, Fique bem. A luz está boa, não está? A nossa, nossa relação com a nossa cor, nossa imagem pessoal está sempre em causa. Estamos sempre a olhar para o espelho.
SUSANA ALMEIDA 00:04:09 Eu acho que às vezes não estamos a olhar para o espelho, mas pensamos que estamos a para o espelho.
SUSANA ALMEIDA 00:04:13 Não é uma espécie de sentido de oportunidade de darmos o nosso melhor. E isso não é mau. É uma característica que mostra Abril e gosto. Gosto em darmos o máximo, mas de facto, às vezes não é uma prioridade.
JORGE CORREIA 00:04:26 É uma espécie de brio para a maneira como nós estamos a olhar para a maneira como gostamos que os outros olhem para nós e dizer assim olha, está muito bem e gostamos, Eu gosto de a ver. Aliás, a nossa cara diz muita coisa sobre nós. A maneira como eu imagino que alguém entre aí no consultório, um médico, um psiquiatra, ainda por cima uma psiquiatra, olha e tira logo a pinta ao que aí vem.
SUSANA ALMEIDA 00:04:50 Não devemos tirar logo a pinta. Aliás, é muito mau irmos, como se diz em Portugal, em português corrente, irmos de carrinha. Não é a fazer um pressuposto até preconceituoso porque associamos algumas características de gosto ou de estilo a classes sociais ou etnias ou subgrupos e às vezes até é bastante enganador. Mas há, de facto uma coisa que os psiquiatras sempre se habituaram a fazer, que é a minúcia da observação.
SUSANA ALMEIDA 00:05:20 Por exemplo, eu faço muito gosto e é assim que ensino os os internos que estão comigo e os outros que estão comigo a ir buscar os meus doentes à sala de espera para poder ver muito antes como eles chegam e com quem estão, como estão, se estão a conversar, se estão a olhar para o chão, se estão isolados, estão sozinhos, socializam e, portanto, como se levantam? Como caminham? Qual é a sua indumentária? A velocidade, a forma como caminham, tudo isso é uma informação preciosíssima para um psiquiatra, porque acrescenta muito àquilo que eu já estive a consultar no processo antes chamado doente. E nesse sentido, se quiser. Para o psiquiatra, a observação do não verbal mais do que até o aspecto só da compleição da face ou do cansaço, acrescenta imenso valor, imenso valor e, portanto, sim, sobretudo neste contexto, muitas vezes um aspeto muito determinante. Infelizmente, às vezes eu vejo pessoas com pior aspecto que o que eu esperaria, mas muitas vezes, surpreendentemente, eu vejo pessoas como muito melhor aspeto que eu esperaria.
SUSANA ALMEIDA 00:06:20 Portanto, isso também é gratificante.
JORGE CORREIA 00:06:22 Então, Susana, E pode ensinar nos a nós, leigos, não psiquiatras e que não trabalhamos como doentes. O que é que lê? Como é que se leem as pessoas? O que é que vai à procura?
SUSANA ALMEIDA 00:06:34 Eu vou à procura daquilo que nós normalmente vamos à procura numa interação social, mas um bocadinho mais além, se quiser. Aquilo que eu tive, tentei dizer no início. É uma das características mais importantes da comunicação não verbal e até uma ferramenta do psiquiatra chama se a aparência e o comportamento. É uma forma que nos ajuda a perceber se a forma começou a se apresenta e se fala. É coerente com a forma como a pessoa normalmente é e com a mensagem que nos quer transmitir. Portanto, o que é que nós estamos à espera? De uma certa coerência entre o verbal e não verbal ou de uma incoerência? Vamos à espera de ver se a pessoa está a comunicar connosco ou com mais alguma entidade que pode ser produzida pelo seu cérebro, como por exemplo, na doença psicótica, na esquizofrenia.
SUSANA ALMEIDA 00:07:22 De facto, responde a estímulos que não tem perceção, portanto algo que acontece dentro do seu cérebro, mas que eles interpretam como vindo do exterior. É uma coisa fascinante e assustadora, porque, de facto, nós percebemos que o mundo está perturbado com qualquer coisa que ele vê e sente ou só ouve. E nós percebemos que está ali uma espécie de interrupção na comunicação. Mas o doente habitual aqui, por exemplo, no sítio onde eu trabalho, há um doente que não é habitualmente o doente dito psicótico. É um doente que pode estar e. Digerir, por exemplo, o diagnóstico, processar o que lhe está a acontecer, às vezes de uma forma mais ansiosa, às vezes de uma forma mais depressiva e às vezes até com alguma normalidade. Tudo o que eu tento procurar é se aquilo que me está a dizer, então, coerente com tudo aquilo que eu estou a tentar perceber, se esquiva os olhos, se olha bem, se fica manchado, se chora, se chorei um choro triste, se é um choro gritado de revolta também acontece.
SUSANA ALMEIDA 00:08:27 Se é um doente que não prefere falar comigo porque está zangado e até está indignado com vir à psiquiatria. Existe imenso estigma ainda hoje e, portanto, muitas vezes o que eu pretendo é só uma forma de tentar chegar até ele. E às vezes todas essas pistas são importantíssimas. Até posso às vezes começar uma consulta por refletir isso mesmo.
JORGE CORREIA 00:08:48 Como é que se ajuda doentes, neste caso doentes de cancro, que acabaram de saber ou que já estão em tratamento no instituto? A lidar com essa noção de imprevisibilidade e de medo do futuro.
SUSANA ALMEIDA 00:09:04 É engraçado. Eles nós ajudamos, mas às vezes eles até nos ensinam a nós como é que se pode fazer isso de forma competente. Eu acho que estou numa posição de grande privilégio, porque eu todos os dias aprendo muito e aprendo com as pessoas que tenho a sorte de poder consultar. Ora bem, pensemos na pessoa e nós chegamos a alguém novo, um médico, neste caso uma psiquiatra com toda uma bagagem de quem eu fui até hoje. A minha identidade, a minha cultura, o meu meio, os meus recursos internos e externos.
SUSANA ALMEIDA 00:09:41 E é essa pessoa que adoece. Portanto, eu adoeço dentro de uma personalidade, de um contexto e uma forma de estar. E nós temos de conhecer exactamente essa pessoa para perceber a forma como ela vês. Por exemplo, uma coisa que é muitíssimo relevante essa pessoa já teve antecedentes de um adoecer patológico perante o sofrimento. Há pessoas que o sofrimento não é uma doença de todo. Aliás, muitos de nós vamos ter se tudo correu bem, muitas perdas ao longo da vida. Desde logo, quando fazemos escolhas, as escolhas importantes da nossa vida importam sempre um caminho e outro que ficou para trás. Portanto, se nós vamos para a medicina ou se vamos para o jornalismo, deixamos de poder ser arquitetos ou pilotos de aviação, pelo menos em tempo real. E ao mesmo tempo, podemos ter um dia.
JORGE CORREIA 00:10:24 Isso dói nos. Essa, essa escolha que em princípio é positiva. Nós, perante os dados que nós temos da nossa vida naquele momento, fizemos uma escolha positiva. Como é que essa ideia do que não escolhemos nos dói? Então, passamos a nossa vida sempre a choramingar Não.
SUSANA ALMEIDA 00:10:42 Não, não, não, não nos dói sempre. Vai nos sempre ser a escolha que nós tomamos não nos agradar ou não se cumprir. Não, não, não nos permitir concretizar aquilo que esperamos que ela pudesse ser. E nesse sentido, muitas vezes temos uma coisa que é peculiar, que é uma nostalgia do que poderia ter sido. E essa nostalgia do que poderia ter sido acontece muitas vezes, quando depois a vida corre mal.
JORGE CORREIA 00:11:04 Como é que é isso? Eu quero saber sobre isto. Nostalgia daquilo que poderia ter acontecido. Portanto, eu fui por aqui e agora estou aqui, como se diz também no meu norte. Estou aqui a torcer a minha orelha, porque que diabo, fiz a escolha errada.
SUSANA ALMEIDA 00:11:18 E olhe se imenso cá nesta vivência da doença. E foi por aí que a gente começou. Imagine que eu adoeci com uma doença, neoplasia e essa doença neoplasia feita, por exemplo. A minha vida relacional começa por afetar a minha profissão e, portanto, eu vou para casa. Sou casada, imagine, e ganho menos dinheiro.
SUSANA ALMEIDA 00:11:39 Sinto me afetada na minha autoestima porque não consigo providenciar para a minha família da mesma forma, é porque sinto me incapacitada e portanto, fragilizada numa posição de semi dependência, se quiser. E na sequência dessas perdas eu noto que o apoio que eu gostaria de ter do meu marido não é exactamente aquilo que eu esperaria se um dia ficasse doente, porque as coisas correm bem à partida. Quando a vida corre bem, às vezes a vida começa a correr mal e normalmente, na versão lógica, é uma situação desagradável, mas frequente, de perdas sucessivas, pelo menos transitórias. Lá está, porque a incapacidade para trabalhar muitas vezes resulta nestas circunstâncias que eu estou a dizer. Mas imaginemos como, por exemplo, e eu vi hoje, que é o caso de haver uma senhora que tem um tipo de neoplasia que afecta muito a sua sexualidade e a sua identidade feminina, com alterações no corpo que são marcantes e hormonais, por exemplo. Nessa altura a pessoa pode sentir que esta pessoa está a desiludir. A pessoa que está aqui ao meu lado não me está a apoiar nem me sabe cuidar na medida que eu gostaria.
SUSANA ALMEIDA 00:12:44 Sempre fui um homem frio. Se eu tivesse ficado com aquele meu primeiro namorado que era carinhoso, talvez isto fosse diferente. Está a ver como é engraçada a vida? Como se o tempo ficasse ali congelado e o que era fosse o que eu esperaria que fosse, não é? Não é. O tempo passou e aquele namorado ou aquela pessoa que uma vez conhecemos que era carinhoso e simpático, se calhar hoje é uma pessoa desagradável e muito ressabiada com a vida. Nós não sabemos, mas nós fazemos este exercício em permanência. O ser humano fá lo muitas vezes. E se eu tivesse escolhido ser enfermeira, sei que agora talvez pudesse ajudar melhor. E se eu tivesse, em vez de ter ido ver? Como se nós tivéssemos uma capacidade de manipular o tempo e pudéssemos ir rebuscar oportunidades sem perceber que houve uma modificação radical. O tempo passou, eu também sou diferente.
JORGE CORREIA 00:13:34 Estamos a falar agora dessa mulher que sofre uma questão que afeta a sua sexualidade, a sua, a sua doença. Provavelmente até pode sofrer uma mutilação numa mama onde for.
JORGE CORREIA 00:13:47 Como é que se conversa lá em casa? E eu estou a falar de uma mulher no caso da mama de um homem, no caso da próstata, no órgão sexual. Como é que? Como é que se abrem vias de diálogo lá em casa, quando se calhar muitos destes casais nem sequer habitualmente falavam de coisas mais normais e comezinhas e depois lhes caiu uma desgraça em cima.
SUSANA ALMEIDA 00:14:12 Está a ver como é o ponto? O ponto é esse. Se o casal a comunicar ou tem um histórico de boa comunicação verbal, não verbal, sexual, conjugal, habitualmente nós temos isso a nosso favor, como é evidente. Portanto, é um casal que vai ter menos dificuldades, que vai ter mais capacidade em pedir ajuda e encontrar outras formas até de se encontrar. Peço desculpa pela redundância na forma como encontra o corpo e encontra o outro. Como pensa essa intimidade? Novas formas de excluir o erotismo. Eu vejo aqui coisas fantásticas na forma de um casal muito cúmplice encontrar formas satisfatórias de ter uma sexualidade plena, não aquela que era, mas a que passou a ser.
SUSANA ALMEIDA 00:14:50 Se o casal já traz problemas, se a pessoa que há dois já tem timidez ou dificuldade em ser sentida e percebida pelo seu parceiro e vice versa, o parceiro tem dificuldade em exprimir se porque também muito frequente. Nós ainda temos uma cultura em que as pessoas do género masculino têm alguma dificuldade em dizer ou verbalizar fragilidades desse género, quase como se a virilidade fosse uma condição sine qua non para eu ser a pessoa que sempre fui. E desconstruir isto, sobretudo nas gerações mais velhas, é muito complicado. Portanto, como é que se chega lá a casa com naturalidade? E se eu entendo, por exemplo, na consulta nós temos uma colega que é mesmo especialista em homossexualidade e trabalha com estes casais. Mas se eu perceber em consulta que há algum tabu ou obstáculo que isto está a cavar o isolamento da pessoa e torná la mais doente e naturalmente, uma pessoa doente afetam o sistema e o sistema e a família, e vai muitas vezes além do casal. Eu às vezes convido a pessoa a vir, o companheiro, o parceiro, se quiser, companheiro.
SUSANA ALMEIDA 00:15:55 É uma forma que às vezes é uma palavra até bonita, mas que está destituída de seu sentido quando nós falamos em termos.
JORGE CORREIA 00:16:03 O que acontece nessas consultas? Em que? Em que convida o outro ou a outra a estar presente?
SUSANA ALMEIDA 00:16:09 Eu preparo, às vezes até escrever uma carta, faço questão. Gostaria muito de ter presente. Gostaria muito de o conhecer. Desculpa este abuso, portanto, quando vejo que a pessoa se calhar vai estranhar ser convocada a uma consulta e depois é com naturalidade, sempre à frente da pessoa que está doente para que ela não se sinta excluída ou sentir que há uma espécie de conspiração contra ela. E se nunca nos abordamos com a naturalidade que tem que ser. Podemos muitas vezes com de uma forma que eu penso que facilita, que é legítima. Nesta consulta, em que eu já estou há muitos anos, é habitual que pessoas que passem por aquilo que está a passar, a sua mulher ou o seu marido refiram que complexo o retomar da intimidade, que há uma insegurança com o próprio corpo e que isso transforma muitas vezes uma insegurança na relação.
SUSANA ALMEIDA 00:17:02 Não sei se isto vos tem acontecido, se algo em que tenham refletido. Gostaria muito de ouvir ambos na forma como se adaptaram a esta situação ou se estão a tentar adaptar a isto. Como é que se.
JORGE CORREIA 00:17:11 Ultrapassa depois uma situação de uma mutilação, por exemplo, ainda que possa ser temporária, no caso de, enfim, de uma mama, que uma mulher releva muito como como parte da sua própria identidade, quer. Quero imaginar esta coisa de chegar a casa sem algo que era muito importante para aquela relação, para aquele casal. Sim, estou. Estou a pensar em casais heterossexuais, enfim, comum como uma norma mais genérica, mas isto pode aplicar se a qualquer, a qualquer.
SUSANA ALMEIDA 00:17:38 Jornada, É.
JORGE CORREIA 00:17:39 Verdade. E tipo de.
SUSANA ALMEIDA 00:17:40 Relação é engraçado. Tudo depende da forma como a pessoa valoriza o órgão. E uma vez tive aqui uma situação bizarra em que uma mulher disse que se a proposta for mastectomia, prefiro morrer, porque as minhas mamas, para mim, são uma parte crítica da minha identidade.
SUSANA ALMEIDA 00:17:59 Eu não consigo imaginar me sem elas e, portanto, uma delícia, mesmo com gravidade. Um caso que me recordo e tivemos que trabalhar isso muitíssimo bem. E foi possível fazer a cirurgia de uma forma mais poupadora para ela conseguir lidar com o processo. Mas também já tive pessoas para quem o cabelo era a nossa, que chamávamos a essa paciente Rapunzel. O cabelo era a identidade. Era um cabelo gigante, maravilhoso, de um volume e de uma beleza que de facto, era a identidade que ela sempre reconheceu em si. Tenho o cabelo comprido desde pequenino, portanto, partindo do princípio genérico que nós valorizamos sempre são órgãos que, dentro da sua individualidade, da sua singularidade, da sua forma e do seu e da sua textura, contexto, etc, São profundamente íntimos e normalmente são órgãos eróticos a que se atribui o sentido erótico. A maior parte das pessoas, curiosamente, passa por isso de uma forma brilhante. Custa, mas nós podemos facilitar isso. E se no início há uma certa timidez e até há mulheres que não gostam de se destapar ou descobrir para quem estar nu em presença da pessoa que é o seu objecto de amor e da pessoa com quem partilha a sua sexualidade.
SUSANA ALMEIDA 00:19:15 É quase horrível. Horrível no sentido de eu tenho medo que eu não me vejas como algo desejável. Eu tenho pânico em que eu deixo de ser um objecto de amor para ti ou de desejo. E nesse sentido, o que é surpreendente é que a pessoa que de facto se importa e tem uma relação madura e de grande qualidade com quem passa por uma coisa dessas, não vê isto todo como um obstáculo. A maior parte das pessoas passa por isso. Se tiverem uma relação sã, se tiverem uma relação sã, conseguem ultrapassar esse obstáculo. O mesmo para o homem e apesar de não se ver na próstata, mas às vezes há cancros do pénis ou do testículo também passam por isso.
JORGE CORREIA 00:19:57 Já aprendi agora nesta conversa que o sexo fraco afinal é o dos homens. Então é exemplos de homens que afinal se tenham portado surpreendentemente bem neste processo e que é que a Susana tenha tenha acompanhado.
SUSANA ALMEIDA 00:20:14 Eu nem sequer consideraria que o sexo fraco é o dos homens. Eu pensei que as mulheres, na nossa cultura, porque também trabalhei na cultura anglo saxónica, fiz a minha especialidade em Inglaterra.
SUSANA ALMEIDA 00:20:24 Eu acho é que as mulheres na nossa cultura têm uma posição mais estoica, se quiserem, geracionalmente, Realmente são as pessoas que são expectáveis serem cuidadoras dos mais velhos, mesmo quando não são os seus pais, quando são só as noras. E esse contacto mais se calhar natural, com um corpo doente e vivido pela mulher que de uma forma mais natural do que o filho ou o genro. Portanto, o corpo que adoece normalmente fica mais recatado e é observado mais pelas mulheres. Esse foi assim que se foi educado cá menos e, portanto, é uma forma mais natural de ver o corpo doente por parte da mulher, por parte do homem. Mas não concebo que seja de todo fraco e vejo, de facto, cuidadores masculinos que são extraordinários. Como é que um homem extraordinariamente, Posso lembrar me, por exemplo, de um caso fora de série porque é fora de série e nem sequer é uma atração sexual direita. Um doente meu que nem sequer é meu doente. Ele nunca foi meu doente. Ela foi só um homem que eu pude acompanhar porque ele nunca adoeceu Do ponto de vista psiquiátrico, até foi uma doença oncológica muito complicada.
SUSANA ALMEIDA 00:21:30 é uma doença oncológica que o obrigou desde pequena a fazer cirurgias e uma tipo de cancro que aparece repetidamente porque é hereditário. Portanto, ele a fazer esta série de cirurgias ficou com aquilo que a gente chama sacos à exaustão. Portanto, ele ficou com quatro ostomia, Jorge, quatro dores urinárias e duas daquilo que a gente chama colostomia do cólon. Portanto, ele ficou com dois sacos à frente. Como é que se sobrevive? E com a dignidade e um brilho que não tem no chão? Este homem veio à minha consulta muito triste e disse me que esta última cirurgia tinha sido o fim do seu relacionamento, que ele tinha que se divorciar. E eu perguntei então porquê ele? Porque a minha mulher é linda, maravilhosa e eu não posso obrigá lo a viver com uma pessoa como eu. Fica. Portanto, eu preciso de me divorciar para que ela possa ser feliz e encontrar a felicidade com outra pessoa que lhe possa proporcionar o que eu não consigo. E eu disse Mas não percebo. Então vocês não são felizes e gostam um do outro? Como é que acha que ela agora vai ser feliz só porque.
SUSANA ALMEIDA 00:22:31 O meu doente, vamos chamar de António, adoeceu. Ele diz Então amar é libertar. E nós éramos autores, não tem noção. Nós éramos profundamente realizados sexualmente. Como é que eu posso impor a minha mulher esta limitação horrível? Tem noção do que é Dois sacos à frente e dois sacos atrás? O medo que isto de escola, o medo que transborda, o medo que haja uma fuga inadvertida. Isto é uma. Isto é muito difícil. Olha, não foi nada difícil. Nós chamamos o casal, tivemos aqui umas reuniões a dois e depois a três. A mulher dele era extraordinária também e eles encontraram um equilíbrio satisfatório e muito realizado para poderem ver a sua sexualidade. E sabe qual é a ironia? Passados dois anos, foi ela que adoeceu com cancro da mama. E sabe o que é que é engraçado? Já sabe, claro. Eles viveram muitíssimo melhor essa, essa doença, porque sabiam exatamente o que era preciso fazer para que as coisas corressem bem.
JORGE CORREIA 00:23:37 O que é que acontece? Estávamos a falar agora aqui deste vou me divorciar para a libertar.
JORGE CORREIA 00:23:43 Quando acontece? Quando acontece exactamente o divórcio? Mas pelas más razões que é alguém que sofreu uma doença oncológica e que ainda por cima, quando chegou a casa recebeu mais uma notícia que é essa pessoa que está está lá em casa, diz que se vai embora, que não aguenta.
SUSANA ALMEIDA 00:24:02 Sim, isso é um bocadinho o início da conversa, não é? Naquela sucessão de perdas que às vezes sucede. É triste e às vezes é por isso que eu posso ir à sala de espera. Às vezes nós vemos pessoas que chegam acompanhadas e nós percebemos na primeira consulta ou na segunda que a relação é frágil, tem ali vulnerabilidades complicadas que já vem de trás. A doença é só uma espécie de reforço dessas vulnerabilidades. E às vezes a terceira consulta já não está lá ninguém. A pessoa já vem sozinha, é a quarta ou a quinta. Confirma se que houve uma separação. E habitualmente as pessoas têm o entendimento de o meu marido não aguentou, a minha mulher não conseguiu mais e, portanto, o casamento não sobreviveu à doença.
SUSANA ALMEIDA 00:24:46 Algumas pessoas com mágoa, algumas pessoas com rancor, outras pessoas com naturalidade, até quase que um alívio, como se aquilo fosse uma coisa que já era má. E então, olha, mais vale sozinho que mal acompanhado. Portanto, temos sempre surpresas. As pessoas não vivem como nós esperamos, vivem como elas próprias aprendem e nos ensinam. E no nosso processo. E essa é ajudar as pessoas nesse caminho. O que é fabuloso ao trabalhar cá é que a gente percebe que a maior parte das pessoas tem de facto um crescimento pós traumático. Ou seja, eu não sou igual e tive muitas perdas com a doença. Mas eu sei melhor o que quero e sei melhor escolher. E parece que aquele caminho que agora se abre é exatamente o caminho que eu quero traçar, que é uma coisa que nós, quando não temos dificuldades físicas, relacionais, quando temos aquilo que a gente se chama a ideia da imortalidade, porque somos jovens e nunca percebemos o que poderá ser correr mal antes de chegar à velhice. Porque a gente jovem não é tudo falado de gente jovem, sei lá, pessoas com menos de 30 anos ou 40 acham sempre que se olhar para frente eu vou viver até os 80 ou até os 90 de acordo com estas estatísticas e tudo irá correr mais ou menos bem.
SUSANA ALMEIDA 00:25:57 Se eu tiver os meus sapatos feitos e tiver alguns cuidados. Porém, não é bem assim, né? É o que é. O que é fantástico é a gente perceber que a maior parte das pessoas, depois de um processo de adaptação, é duro. Às vezes demora umas semanas, encontra um caminho e um caminho que lhes faz sentido. Um caminho muito difícil de encontrar, mas que é profundamente rico em significado. Ou seja, eu sei quem são as minhas pessoas? Não sei quem são os meus amigos e eu sei que amo quem eu quero passar tempo. Eu sei o que é que gostaria de fazer ao meu tempo. E não é de uma forma supérflua ou bacoca do género vou deixar de trabalhar para gozar a vida. Não é nada disso. Às vezes as coisas que me deixam sempre com vontade de rir e de uma forma genuína é que o tempo não é um dado adquirido. A qualidade de vida não é um dado adquirido à sobrevivência nem nada adquirido. Portanto, tenho que fazer o melhor que posso com o que tenho.
SUSANA ALMEIDA 00:26:49 E isso nós vemos.
JORGE CORREIA 00:26:50 É uma espécie de restauro que vem das cicatrizes onde fundamos a nossa forma de ser e de estar, precisamente.
SUSANA ALMEIDA 00:26:57 Até tecnicamente, entre pessoas que trabalham na oncologia. Nós chamamos a isto um crescimento pós traumático e é magnífico de ver. Nós acompanhamos a pessoa, faz o caminho, fazemos umas dicas e refletimos com ela o que possa ser. Mas é engraçado pessoas com muito poucas opções, com aquilo que chamaríamos comumente um caminho curto Conseguem vivê lo com uma plenitude e uma verdade em paz.
JORGE CORREIA 00:27:26 Muitas vezes falamos agora da questão da imortalidade, da finitude. Como é que. Como é que presumo que a conversa do fim esteja sempre inerente quando não estamos a falar de doenças tão importantes e relevantes como como esta? Como é que? Como é que se lida com isto? Como é que se lida com esta ideia do fim da morte?
SUSANA ALMEIDA 00:27:51 Olha, é um bocado como a ideia da sexualidade. Há coisas que de que a gente não fala, exceto se nos perguntarem ou se nós nos sentimos mesmo muita necessidade de falar.
SUSANA ALMEIDA 00:28:00 É quase como se fosse um reduto de privacidade, com uma uma sentença de quase que é feio. Porque é que eu ia falar da morte com alguém que está a tentar tratar me? Ou porque é que eu havia de trazer a morte à baila quando a pessoa está a tentar fazer o seu melhor para me curar um bocadinho. O psiquismo do doente que chega a um instituto oncológico para tentar curar se, acha muitas vezes que o médico está demasiado ocupado com os tratamentos para ser possível colocar a questão sobre. E agora? Como vai acontecer quando? No fundo, a pergunta subjacente é eu vivo? Eu sobrevivo? E muitas vezes as pessoas não conseguem fazer a pergunta. O que nós tentamos é que esse assunto possa ser conversado cedo. Se nós vemos que as coisas estão a descarrilar, é muito importante que esse assunto possa ser discutido e discutido num sentido construtivo, para que a pessoa depois não seja apanhada numa situação de não poder tomar decisões ou não ter tempo para tomar decisões, porque achava que o horizonte era mais largo do que na verdade era.
SUSANA ALMEIDA 00:29:06 Eu tenho muito a ver com a deficiência, com a justiça e eu preciso de tempo para fazer algumas coisas que o doente partilha connosco, que são muito importantes. Portanto, eu tenho. Não vou dizer que o horizonte é tanto tempo ou é realmente um horizonte sem esperança? Isso não é? Não é assim que se faz. Mas falar da morte.
JORGE CORREIA 00:29:24 E depende muito das culturas, porque falamos a um bocadinho das consultas das culturas mais anglo saxónicas, onde vemos as coisas serem discutidas com mais crueza. Se calhar é na nossa cultura, mais com base nos influenciados, naquilo que nós percebemos que podemos perguntar ou aquilo que não perguntamos bem, mas queremos saber a resposta.
SUSANA ALMEIDA 00:29:45 Sim, mas é engraçado. A transcultural mente, independentemente do pragmatismo. De facto, eu, que não tenho muito quando estava lá, é que as pessoas não têm. Não rodeiam as questões e perguntam as mesmas perguntas. Numa cultura anglo saxónica, Podem vir, podem ser curtas e simples, mas podem ser uma pergunta a parte ao lado e sei lá.
SUSANA ALMEIDA 00:30:06 Imagine quantos tratamentos eu tenho daqui para a frente, se eles são todos os meses, quantos tratamentos é expectável que eu faço e as pessoas estão a fazer juízos que têm, Portanto, muitas vezes a pergunta é no fundo eu estou capoeira? É esta? Esta é a sensibilidade que nós temos que ter e perceber o que está a ser dito, para lá do que está a ser verbalizado. E muitas vezes, aquilo que a pessoa precisa é só ser pacificada, que há muito a fazer, que há um caminho a percorrer. Com o tratamento hoje em dia é muito mais eficaz do que o que foi que vamos apostar na qualidade de vida, proporcionar e estar atentos àquilo que, para ela ou para ele é importante? Conseguir conciliar, por exemplo, as pessoas valorizam muito uma coisa extraordinária, que é o controlo. Eu hoje estive aqui, amanhã tenho consulta maravilhosa que me dizia Doutor, eu só preciso de me organizar. Eu sou muito metódico. Eu só preciso me organizar. Quando me dizem não sei o que vai ser o seu tratamento a seguir à cirurgia, eu fico aflita e para mim é melhor saber.
SUSANA ALMEIDA 00:31:03 Quimioterapia dez sessões e eu já me organizo do que ficar assim uma espécie de algo no ar. E ela tem razão. É uma mulher de 50 anos que trabalha, ativa, trabalha por conta própria. Preciso saber quanto tempo é que vai estar fora do trabalho, como é que se vai organizar, se vai precisar de mudar, se tem dinheiro para pagar as contas. Isto é a nossa vida e, portanto, dá às pessoas um bocadinho de controlo e crítico. Voltando à pergunta sobre como é que se fala sobre o fim quando a pessoa estiver preparada? Quando vemos que as coisas estão a correr mal e havendo sempre a disponibilidade da nossa parte de falar sobre coisas que são difíceis e às vezes nós só conseguimos mostrar disponibilidade de falar coisas quando são difíceis, quando mostramos esperar para falar o que quer que seja e particularmente quando valorizamos qualquer pergunta, seja ela a pergunta mais descabida. E podemos começar por dizer isso não a perguntas descabidas. É importante que me fale das suas preocupações, sejam elas quais forem.
JORGE CORREIA 00:31:58 Susana, eu estou a pensar naquilo que é o seu dia a dia.
JORGE CORREIA 00:32:03 Todos os dias alguém entra dentro desse consultório, seja doente, seja um colega profissional com um imenso saco cheio de dores e de angústias e de. Como é que se lida com isto? Não profissionalmente. Quando vai para casa e tem essas coisas todas lá dentro, dentro de si, dos seus ouvidos, da sua mente. Como é que se. Como é que se funciona? Como é que se sobrevive a isto?
SUSANA ALMEIDA 00:32:35 Eu ainda acho, por muito que às vezes é difícil, de facto. E muitas vezes eu vejo mais coisas tristes, coisas que me deixam feliz, mas vejo muitas coisas que me deixam feliz e muitas das coisas que me deixam feliz quase que validam as que me trouxeram Triste. E o que é que é triste? E o que é que é feliz? Feliz é conseguir que alguém que esteja muito doente encontra momentos em que está tranquilo, seja junto da sua família, seja aliviado, sem ter dores, a conseguir dormir, a conseguir a casa, a conseguir comer, ir à mesa, ir à mesa.
SUSANA ALMEIDA 00:33:03 No Natal. Às vezes nós damos de barato coisas que as pessoas valorizam tanto. Fazer uma videochamada, alguém que não está habituado ou familiarizado com mídia a fazer uma vida chamada conflito, que está a estudar longe Todas essas pequenas coisas nós estamos de fato, nós aqui parecem coisas triviais, mas a nós damos muita satisfação, pois facilitá las é o grande sentir, minorar a angústia, minorar a ansiedade, possibilitar que a pessoa se sinta menos depressiva. Tudo isso é muito importante e dá nos uma enorme sensação de prazer. E o que é engraçado é que é. Acho que isto ajuda a perceber. Os doentes graves valorizam imenso estes pequenos acrescentos. São têm uma forma de de nos devolver essas melhorias que é quase. Eu costumo dizer que é quase um egoísmo altruísta da parte do médico. Eu sinto me feliz também e nesse sentido, e ao vê los bem, fazem faz me faz com que eu me sinta bem e portanto, eu de facto levo muito daqui. Agora, quando eu perco um doente, quando os dentes morrem, quando a gente os acompanha até o fim ou quando a gente sente que as coisas estão a agravar ou estão a perder muita qualidade de vida, custa horrores.
SUSANA ALMEIDA 00:34:18 Não há dúvida que custa horrores. Custa muito E nós temos várias coisas que nos ajudam. Falamos entre nós, temos uma equipa muito coesa e vamos falar entre nós em intervenção, se quiser, ou em supervisão com outros colegas fora de cá, em sigilo absoluto, para nos ajudarem a ver outros ângulos ou a tentar perceber o que é que poderia ser feito. Mas também é muito importante, dizem uns aos outros. Nada de especial. Anonimamente, discutimos as situações para que tenhamos uma validação de que estamos a fazer tudo o que é possível ser feito. Nós só somos uma cabeça, dois olhos. Portanto, pode haver alguma coisa que nos esteja a escapar. É essa intervenção que é a discussão entre pares dentro desta, desta especialidade ou com outros colegas. No caso, é um bocadinho o suporte da intervenção psicoterapêutica É muitíssimo importante para recompormos aqui. Alguma intersubjetividade. Objetividade? Nunca. Mas pelo menos há uma intersubjetividade que nos ajuda a perceber se não falhou nada. Mas há outra coisa que eu acho que é crítica e é uma coisa que eu aprendo tanto, tento aprender, aprendo.
SUSANA ALMEIDA 00:35:25 Já é um bocado arrogante. Tento aprender com o que vivo todos os dias na minha profissão que adoro, que é. O que é que eu tenho que fazer para viver o melhor possível a minha vida, para estar ao melhor nível, para ajudar estas pessoas? Ou seja, nós sabemos muito bem e temos a obrigação de saber muito bem o que é também a prioridade e, portanto, uma vida estável e realizada fora do trabalho, com autocuidado, com todas as medidas que nos fazem felizes, são diferentes entre pessoas, são críticas para se trabalhar bem e, portanto, eu vou para casa ansiosa por ir para casa. Adoro ir para casa, adoro. É parte das pessoas que gosto muito e fazer as coisas que gosto como exercício físico com eles, caminhar na natureza, fazer o que gosto de facto. Mas isso é também uma responsabilidade. Eu tenho que o fazer para poder cuidar bem dos meus doentes e eu não posso levar os meus doentes para apenas com os que gosto. Às vezes levo aquilo para a faculdade e eu tenho duas filhas e às vezes elas, desde pequeninas, são miúdas perspicazes.
SUSANA ALMEIDA 00:36:33 E olhavam me. Diziam Nem hoje estás um bocadinho triste. E eu explicava, sem grandes pormenores, que de facto estavam tristes porque tinham doente, que não estava tão bem como eu gostaria. E elas diziam sempre Andávamos sempre com palavra de consolo. É engraçado. E porque.
JORGE CORREIA 00:36:50 Isso? As crianças conseguem ver nos quase como um aquário? Nós mostramos na cara aquilo que sentimos. O que me leva a perguntar Aí está a energia para para para aquele dia que foi mais difícil. Como é ter que ajudar Para uma família de uma criança que tem uma doença oncológica.
SUSANA ALMEIDA 00:37:13 Olha, eu acho que é das coisas mais difíceis que a minha profissão encerra e eu tenho uma colega que é dedicada a isso cá no meu serviço. Ela é extraordinária e isto traz um peso devastador, porque é uma exigência. Nós, como seres humanos, temos muita tendência à identificação. Nós somos até isto, identificação projetiva. Nós sentimos o outro porque imaginamos. E se fosse eu a perder o meu filho, não é? E é uma situação de empatia extrema.
SUSANA ALMEIDA 00:37:39 É muito difícil às vezes ultrapassar isso e, portanto, implica que a pessoa consiga estar bem e com a distância certa para manter os limites dessa própria relação. Aliás, nesses momentos da relação são muito importantes para que não seja uma relação de simpatia e passa a ser uma relação terapêutica que é só da empatia, é só empatia. É muito bom porque quando nós passamos para lá da simpatia, nós estamos com os amigos, choramos com eles e nós não podemos chorar com os doentes sem sentir que nós aguentamos a dor deles e estamos lá para suportar e para cometer. Porque no fundo, nós aguentamos e estamos lá disponíveis. É sinal que há esperança, há um caminho. Não é um apoio, mas é um trabalho complicado. A grande, grande maioria das crianças, felizmente, passa por isto e sobrevive. Mas não há. Não há maioria que não nos traga mágoa dos que não passam pela sobrevivência. Portanto, é um trabalho muito difícil e eu admiro extraordinariamente os meus colegas da pediatria oncológica e os meus colegas dentro do serviço que se dedicam a estas situações.
SUSANA ALMEIDA 00:38:44 E eu não me dedico particularmente. Mas pode acontecer.
JORGE CORREIA 00:38:48 O que é que uma psiquiatra faz ou usa para sobreviver quando se sente que se está a ir abaixo?
SUSANA ALMEIDA 00:38:57 Excelente pergunta. E nós, ainda por cima temos a responsabilidade de olhar também para os nossos pais. Nós aqui no serviço temos uma consulta de psiquiatria na Suíça ocupacional que realizam, em que tentamos ajudar os nossos colegas que estejam mais em risco de sobrecarga profissional de adoecer, como até que já disseram também ajudá los nisso. Primeiro temos estar atentos. É muito fácil chegar à Linha Vermelha. Nós, quando damos por ela, já passamos à laranja. Isso acontece porque? Porque há um sobre envolvimento com as outras coisas e há uma característica pessoal que nos vulnerabiliza para o Arnault, que é o excesso de motivação.
JORGE CORREIA 00:39:39 Os profissionais não não cuidam muito de si próprios.
SUSANA ALMEIDA 00:39:42 Os profissionais às vezes não cuidam muito de si próprios, particularmente quando são tão motivados que estão sempre disponíveis. Nós até dizemos que são as pessoas mais altas, motivadas e com um nível de tolerância e disponibilidade emocional muito alto, que são mais vulneráveis e as pessoas que são mais frias e que se afastam mais deste tipo de interações normalmente não são as que são chamadas para substituir alguém ou que estão disponíveis para ir falar com a família e, portanto, as pessoas que já trabalham muito e trabalham bem são as pessoas normais mais disponíveis para continuar a trabalhar em excesso e, portanto, são essas que são mais predispostas a adoecer.
SUSANA ALMEIDA 00:40:14 E nesse sentido, porque se preocupam se vão entrar por horas fora de horas de serviço e se vão dar mais horas e mais horas. Obviamente que há uma coisa que vai ficar sacrificada, que é o autocuidado. Vão dormir menos, vão fazer menos exercício, vão estar menos tempo com a família e você ter remorsos e vão sentir culpabilidade. E a partir daqui instala se uma espécie de campo minado, não é? Se eu não tenho, se eu não estou bem em casa porque chego tarde e a minha família recrimina, eu vou chegar triste ao trabalho e vou sentir me revoltada com o trabalho que está a estragar a minha vida pessoal. E quando se dá por ela, todas, todas as áreas estão infestadas de maus sentimentos. E a gente sente porque é que eu ia tentar medicina se a medicina me está a fazer isto a mim? E acontece o grau, o último do Arnaldo, que é a despersonalização. Eu, que tanto quis ser médico e que foi um médico tão bom. Mas sentir empatia e deixo de gostar da minha profissão que me deixa de trazer, já não traz realização pessoal e é tristíssimo.
SUSANA ALMEIDA 00:41:10 Portanto, como é que a gente se cuida? Como é que a gente se, se, se olha? Primeiro, a principal garantia como profissional no campo, Arnaldo, tem que ser institucional. A instituição tem que olhar para os profissionais, tem que lhes garantir condições para trabalharem dentro do limite. Porque se a própria instituição quebra o limite e pede mais e mais e mais, se não protege os tempos, os turnos, o excesso de horas. Obviamente, por muito que eu tenha cuidado comigo próprio, estou sempre em risco. E depois há uma característica também institucional que que tem a ver com o desentendimento com a organização superior. Se eu, como profissional, estou em desacordo com as minhas chefias ou até se tenho um conflito ético com o meu líder imediato, porque eu vejo as coisas a serem feitas de uma forma com a qual não me identifico. Muitas vezes há um fator de risco também para para esse mesmo burnout e nós não podemos. Deixar de desatender aquilo que é uma obrigação nossa entre pares, como foi a intervenção de falarmos entre nós de doentes dentro do anonimato e do sigilo? Também é muito importante se ouvir um colega que antes era muito entusiasta, prestável e amável, ficar triste, baço e até arisco, irritável.
SUSANA ALMEIDA 00:42:34 Uma pessoa que já não fala comigo ao telefone. Sou um doente com o mesmo gosto que sempre falou e eu tenho a obrigação de perguntar então o que se passa contigo? Tu estás bem? Precisa de alguma coisa? Eu não posso passar pelas pessoas sem verificar ou tentar perceber se há alguma coisa que eu possa fazer. Afinal, nós também somos profissionais e, nesse sentido, os médicos têm uma obrigação de autor. Eu não diria. Nós não podemos estar a ser médicos uns dos outros, mas temos que estar pelo menos atentos. Acho que é um dever.
JORGE CORREIA 00:43:06 Tem que haver uma espécie de missões de resgate de vez em quando, quando nós vemos que o outro se está a afundar.
SUSANA ALMEIDA 00:43:11 É o mínimo E o ideal é antes de ele se afundar. E quando percebemos que alguma coisa está a mudar e não é uma coisa tuga de cusquice, ataque de sapateiro não é nada disso. A psicologia não tem de enfrentar alguma coisa que se possa fazer. Alguma coisa. Só isto. Não te vejo cansado. Estás triste? O que é que se passa contigo? Há qualquer coisa que tem que ser feita em privado, mas na mesa da cantina tem que ser no recato da privacidade.
SUSANA ALMEIDA 00:43:42 Não podemos aparecer no gabinete e perguntar entre dentes está tudo bem contigo ou no fim das consultas ou ligar ao fim do dia. Mas é importante. É mesmo importante possibilitar a pessoa reflectir que talvez não esteja bem, porque o próprio às vezes uma nota de tamanho.
JORGE CORREIA 00:43:58 Quando eu olho para os médicos, vejo os como uma profissão que dificilmente tolera a ideia de falhar, de que algo que eu não consegui salvar esta doente, resgatar este, este, este doente. Como é que é a conversa entre médicos nesses nesses momentos em que em que não foi possível?
SUSANA ALMEIDA 00:44:22 Eu acho que é muito triste. E todos nós precisamos de suporte nesses momentos. Há colegas que não falam. A gente só vê que eles estão transtornados. Mas eles precisam do seu tempo e do seu espaço para poder processar a coisa. É engraçado. Nós a cada vez mais falamos do luto dos profissionais. Nós temos que identificar que custa e é possível. E é desejável até haver uma expressão emocional depois de um acontecimento destes. É um bocado como na perda de alguém que a gente gosta muito.
SUSANA ALMEIDA 00:44:55 Nós vamos sempre fazer uma espécie de autópsia emocional. O que é que eu devia ter feito? O que é que eu podia ter feito mais? O que é que eu não fiz? E se nós fazemos isso com o ente querido que está na nossa casa, ou que passou por nossa pela nossa vida, então, quando temos a responsabilidade de cuidar dessa pessoa, isso ainda se torna mais avassalador. E depois há características de cada um, não é? Há pessoas que são mais obsessivas e muito perfeccionistas e levam isso de uma forma pessoal. Há pessoas que, se calhar, às vezes a experiência ajuda a perceber que, apesar de tudo o que pudessem ter feito, havia coisas que não dependiam de si e que estariam, se calhar muito mais na dependência da natureza, do problema e das circunstâncias da pessoa para correrem menos bem. Mas é importante. Seria crítico que as pessoas pudessem também, num sítio seguro e num ambiente seguro, normalmente entre pares, poder falar disso, nem que fosse dentro da equipa, brevemente sinalizar.
SUSANA ALMEIDA 00:45:46 Engraçado, nós temos uma estrutura que é uma espécie de uma terapia chamada Grupos de Balint, que são grupos de suporte para profissionais. em que as pessoas podem exatamente falar ao abrigo do sigilo como líder, que é o nome de um psicoterapeuta sobre as coisas que sentiram como difíceis na profissão. E esses comportamentos são particularmente úteis nessa reflexão. Por exemplo, às vezes não é só perder em uma coisa que correu menos bem uma amputação que nós nunca esperaríamos que sucedesse termos transferiram dentro para cuidados paliativos.
JORGE CORREIA 00:46:24 Eu quero resgatar esta conversa. E tu é a esperança da esperança como? Como motor de de conseguir coisas que se calhar nem a ciência consegue explicar assim logo à primeira vez.
SUSANA ALMEIDA 00:46:37 A esperança é 1A1 força motriz épica. Aliás, a esperança não se pode mesmo castrar a esperança. Cada um sabe o que tem e eu vejo pessoas com esperança nas últimos no último mês de vida e a esperança é só de passarem esse mês. Bem, quem sou eu para dizer que essa pessoa. As vezes a semântica e o léxico é devastador e a gente nem tem noção do que diz.
SUSANA ALMEIDA 00:47:04 Imagine dizer a um colega que está a tratar um paciente com tratamento quimioterapia, mas que por acaso é paliativo no sentido em que não pode tratar a doença até ao fim, mas está a tentar conter a doença. Quando se diz olhe, vamos ter de parar com esta linha de tratamento porque não há mais nada a fazer. Wow, isso é muito doente. Eu vou morrer, mas não é isso que ele está a dizer. O problema é que a semântica ou a escolha de palavras não foi feliz. E às vezes o que se pode tentar dizer não é uma lavagem às palavras, pondo lhes perfume e alfazema e dizer o que é verdade. Esta este tipo de tratamento está a trazer mais prejuízo que benefício. Felizmente há outros tratamentos que podem trazer muito mais qualidade de vida e essa qualidade de vida vai lhe permitir estar em casa, estar.
JORGE CORREIA 00:47:47 No papel do outro, ter essa empatia, tentar perceber o que é que cada palavra pode ter como impacto naquela pessoa que ali está connosco.
SUSANA ALMEIDA 00:47:56 Exactamente. As palavras pesam muito mais às vezes do que gestos.
SUSANA ALMEIDA 00:48:01 E quando nós notamos que andamos doentes, nós também estamos muito atentos. Não são só os psiquiatras estão muito atentos àquilo que está a ser dito. O doente está profundamente atento à comunicação do médico. E às vezes os doentes dizem A doutora Alice vai correr bem. Mas ao olhar para baixo, olha para o computador. A voz falhou lhe. Portanto, não foi isso que eu ouvi. E, portanto.
JORGE CORREIA 00:48:23 Uma coisa é o que diz a linguagem verbal, outra coisa é aquilo que diz a linguagem não verbal. Não posso deixar de perguntar os médicos são bons a contar más notícias? Eu acho que a maioria das pessoas, a maioria de nós, somos péssimos a contar más notícias más. Mas os médicos têm essa, têm essa obrigação, Treinam, isso.
SUSANA ALMEIDA 00:48:43 Sim. Por exemplo, na Faculdade de Medicina da Universidade do Porto, que é de onde eu venho, existe mesmo uma disciplina que se se caracteriza por treinar no pré graduado os estudantes de medicina, mas há muitas formações pós graduadas e até profissionais. Nós fazemos aqui no IPO, que prepara os profissionais para esses momentos.
SUSANA ALMEIDA 00:49:03 Há protocolos quase tão protocolado como alguns procedimentos cirúrgicos e pode ser feito. E quanto mais difícil para a pessoa, quanto mais o profissional sente que tem dificuldade nesse gesto ou até responder às emoções do doente, mas deve treinar. São competências de comunicação que devem ser exercitadas até que a pessoa se sinta confortável na sua, na sua práxis. É sempre difícil e nunca podemos transformar uma má notícia numa boa notícia ou uma boa notícia. Afinal, só vai precisar de se fazer tirar a mama em vez de fazer quimioterapia. Onde é que isto é uma boa notícia? Percebe? Na nossa ideia, às vezes até parece que é preciso fazer a cirurgia. Não precisa de fazer quimioterapia, mas a pessoa Salvio, precisa tirar a mama. Portanto. não podemos ir ao ponto de tornar uma coisa que é mais uma coisa que pode ser menos má. Mas podemos falar com com verdade, de forma adequada, particularmente adequada ao contexto. A literacia e a cultura da pessoa que está à nossa frente foram pausadamente, permitindo fazer perguntas, tentando sempre reiterar que estamos a ser claros.
SUSANA ALMEIDA 00:50:12 Eu estou a ser claro. Isto é difícil de explicar. O ónus em meu coração é a pessoa tentar perceber. A senhora percebe o que eu estou a dizer? Não, eu não tenho perceber e vai ter que me fazer entender. Eu é que sou profissional e dar tempo para a informação. Pequenos passos permitem que a pessoa reflita à medida que está a ouvir, que se exprima emocionalmente, à medida que está a ouvir. Se nós fizermos isto assim, a pessoa se sai melhor do que o que a gente imaginaria. Se nós estamos treinados? Às vezes nós até nos esquecemos de ter a certeza que a pessoa não vem sozinha para um momento desses. Imagine alguém que trabalha aqui nesse hospital e que tem que ir para o Brasil ensaiar. Eu não posso dar uma má notícia para ele se for muito mal e depois deixar a pessoa ir embora às 19h00 para casa, para Bragança Aguiar. Ainda por cima se a senhora tiver 77 anos. Ou seja, há algumas coisas de cuidado, de preparação desse momento que nós temos que aprender a salvaguardar e preparar.
SUSANA ALMEIDA 00:51:10 E se quiser, Jorge, o maior obstáculo é a falta de tempo que nos dedicam para fazer isso. Acho que nós, médicos, precisávamos de mais tempo de consulta para fazer isso com a dignidade que o gesto merece.
JORGE CORREIA 00:51:20 No meio de tanta esperança, de tanta dor, de tanta dificuldade e de tanta superação. Podemos definir o que é que seria para si, Susana um dia rechonchuda? Mente bom.
SUSANA ALMEIDA 00:51:33 Mas parte dos dias são bons e isso é mensagem. Falamos em esperança em levantar isto. Eu diria que a maior parte dos meus dias são muito bons e às vezes eu paro a minha consulta e antecipo que possa ter uma primeira consulta até muito difícil e fico surpreendida como as pessoas vivem de facto a adversidade. Apesar das minhas expectativas, elas vivem com segurança, tranquilidade e nem precisam de mim. Podem para a vida delas sem um psiquiatra e muito -1 receita. Portanto, eu acho que um dia rechonchudo de coisas boas e um dia em que eu senti que vi pessoas que pude ajudar, eventualmente algumas diagnosticar e tratar, medicar.
SUSANA ALMEIDA 00:52:09 Eventualmente garantimos que as vou seguir e que as vou acompanhar. Muitas vezes lá está a doentes a quem eu não precisei de ajudar porque eles encontraram a sua forma de sair e às vezes só a oportunidade de reavaliar pessoas e perceber que muito mais depressa do que o que seria expectável, eles encontraram um caminho que as faz felizes. E é ter o privilégio de ouvir isso, ouvir as entrelinhas, ouvir as coisas que às vezes não são passíveis de ser contadas ou partilhadas noutras consultas, que estão mais sobrecarregadas em termos de Técnicos ou ou exigências de perícias. E eu penso que neste sítio há um sítio seguro para que as pessoas possam de facto partilhar aquilo que elas são e a vida que têm. E isso enche me o coração.
JORGE CORREIA 00:52:55 A luta contra as grandes adversidades recolhe forças nos dias bons, nos dias que passaram, nos dias que hão de vir. A alegria de um momento robusto de afetos funciona sempre como uma bateria e a esperança do melhor no futuro, como um dínamo de energia. Vale sempre ouvir, vale sempre falar.
JORGE CORREIA 00:53:12 Vale sempre ser humano na mais universal das suas definições. Até para a semana.
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